quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

A MORTE DE MANEL PESCADOR



     - Manel! Ô Manel! Manel! Ô Manel! - insistia jandira balançando o corpo do marido, dopado do álcool que ingeriu no dia anterior.
     - Manel! Ô Manel! Manel! Ô Manel!
     - O que é mulher?! - respondeu Manuel, sonolento.
     - Acorda, homem. Você não vai pescar hoje não?
     - Eu vou. Você não sabe que eu pesco todo dia?
     - Eu sei Manel. Mas já são dez horas da manhã. Acordei cedo. Já lavei umas roupas. Agora quero aprontar alguma coisa pra gente comer daqui a pouco.
     - Se acalme, mulher, já eu levanto. Não me amole. Eu quero dormir mais um pouco.
     - É que não tem nada pra gente comer no almoço. O pouco que sobrou, você comeu de noite bebendo cachaça. Aliás, essa sua mania de ficar bebendo cachaça direto ainda vai lhe matar.
     - Mata nada, mulher!
     - Mata sim, Manel! Você mesmo me disse que o seu pai morreu afogado porque estava bêbado.
     - A morte do meu pai foi uma fatalidade da vida. Quando a gente tem que morrer, morre de qualquer jeito, em qualquer lugar.
     - Mas é bom não facilitar, Manel. Você fica nesse rio pescando no perau, e ao mesmo tempo bebendo. Água não gosta de ninguém.
     - Não se preocupe. Eu sei me cuidar.
     - Então se levante. Eu vou acender o fogo pra cozinhar o resto do arroz.
     - Já estou de pé, Jandira. Daqui a pouco eu vou pro rio pescar e trago alguns peixes pra você aprontar. Antes, eu vou apontar o dia.
     - Já vai beber de novo, Manel! Já bebeu tanto ontem! Você quase não se aguenta em ficar de pé. Já vi que você não tem jeito, Manel. Depois diga que eu não lhe avisei...
     - Você quer que eu faça o quê?! - falou Manuel, irritado -
     - Olhe, Manel, você pode beber, mas não precisa ser todo dia... nem levar a garrafa de pinga pro rio... é arriscado.
     - Mulher, mulher, parece que hoje você está com o diabo no corpo, não para de falar...
     -   É que você não me ouve, Manel! E tem outra coisa: eu quero que você compre carne. Qualquer carne serve. De boi, de porco, de bode, até de jegue, desde que seja carne. Eu já estou enjoada de só comer peixe.
     -  Jandira, quem come carne é rico. Eu sou pobre. Carne pra pobre é como artigo de luxo. Compra quem pode. Não tenho dinheiro pra comprar as coisas que todo mundo precisa. Não tenho dinheiro pra comprar o peixe que vende na feira, no mercado. A gente deve dar graças a Deus por comer o peixe que pesco todo dia. Peixe é um alimento sagrado, como todo alimento. Se a gente não pode comer carne, come peixe do rio, e não precisa pagar pra comer. Deus sabe o que faz com a gente.
     Jandira olhou pra Manuel com uma certa pena e concordou:
     - Está bem, Manel! Está bem, Manel! Eu falo, falo, mas estou na mesma situação que você. Eu não tenho pra onde ir. Você me aceitou aqui com boa vontade. Não tenho o direito de reclamar com você a todo momento. Não tenho ninguém nesse mundo. Só tenho Deus e você.
     Era assim, a vida rotineira de Manuel, um pescador que morava num barraco à beira do Rio Cachoeira, que banha e corta a cidade de Itabuna ao meio, com a mulher Jandira, que ele arrumou por acaso, quando lhe deu abrigo numa certa noite. O barraco foi feito de improviso com pano velho, resto de madeira, papelão e lona de plástico. Era assim, a vida de dois seres humanos marcados pelo destino, pelo infortúnio, por suas provações existenciais.
     Manuel era pescador. Não sabia fazer outra coisa. Herança do pai o gosto pela pesca. Herança do pai o gosto pelo álcool. Os seus pais morreram quando Manuel ainda era um pré-adolescente. Primeiro foi o pai, que era um alcoólatra. Um dia, o pai foi pescar e não voltou mais pra casa. No outro dia de manhã, alguém o encontrou morto, boiando nas águas do rio por entre as pedras.
     A mãe, com o coração doente, pois sofria de doença de chagas, também morreu pouco tempo depois. Manuel, sem ninguém pra protegê-lo, ficou sozinho no mundo. Não sabia dos parentes. Não tinha amigos. Não tinha ninguém. Só a companhia de Deus que não abandona ninguém. Ainda que qualquer vivente esteja sub-vivendo nesse mundo.
     Manuel ficou muitos anos vivendo como mendigo, perambulando pelas ruas, dormindo nos passeios, nos bancos das praças , nos terrenos baldios, pedindo esmola aqui e ali, sem saber o que fazer e como fazer pra sobreviver e melhorar a sua triste vida.
     Nesses anos de vida mendiga, aprendeu a fumar e a beber, mas era um homem honesto, não roubava nada de ninguém, não virou marginal. Até que um dia, perambulando por uma das margens do Rio Cachoeira, de repente olhou pro rio, e lembrou que o seu pai era pescador. Então, ele teve a ideia de improvisar um barraco à beira do rio, pra se abrigar e sobreviver da pesca. Havia encontrado, enfim, a solução pra sua vida.
     Ali morou alguns anos sozinho. E depois na companhia de Jandira. Um dia, Jandira acordou extasiada. Teve um pesadelo. Sonhou que alguém vinha avisá-la que Manuel estava morto. Jandira ficou apavorada, pensando na possibilidade do marido realmente estar morto. Saiu correndo pela margem do rio à sua procura, sem encontrá-lo.
     Já sem esperança, exausta, viu uma multidão apontando pro rio. Se aproximou e procurou saber o que estava ocorrendo com os olhos lacrimejantes e o coração batendo rápido e forte.
     Com a voz trêmula, indagou a um homem:
     - O que está acontecendo, senhor? O que todos aqui estão vendo no rio?
     O homem de cabelos grisalhos que estava junto dela lhe respondeu:
     - Alguém já foi avisar a polícia, senhora. É Manel Pescador que está morto entre as pedras do rio. Coitado! Era um homem bom, honesto, trabalhador. Não importunava ninguém. O único defeito era beber em excesso. Foi vítima de seu próprio vício. Que Deus tenha piedade dele.
     Após aquela triste notícia, Jandira, naquele momento, caiu desmaiada, sendo acudida pela piedosa multidão. 
 
Escritor Adilson Fontoura

    

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