Pedimos a 20 convidados —
escritores, críticos, jornalistas — que escolhessem os poemas mais
significativos de Fernando Pessoa. Cada participante poderia indicar entre um e
10 poemas. Escritor e poeta, Fernando Pessoa é considerado, ao lado de Luís de
Camões, o maior poeta da língua portuguesa e um dos maiores da literatura
universal. O crítico literário Harold Bloom afirmou que a obra de Fernando
Pessoa é o legado da língua portuguesa ao mundo.
Fernando Pessoa nasceu em
Lisboa, em junho de 1888, e morreu em novembro de 1935, na mesma cidade, aos 47
anos, em consequência de uma cirrose hepática. Sua última frase foi escrita na
cama do hospital, em inglês, com a data de 29 de Novembro de 1935: “I know not
what tomorrow will bring” (Não sei o que o amanhã trará).
Seus poemas mais
conhecidos foram assinados pelos heterônimos Álvaro de Campos, Ricardo Reis,
Alberto Caeiro, além de um semi-heterônimo, Bernardo Soares, que seria o
próprio Pessoa, um ajudante de guarda-livros da cidade de Lisboa e autor do
“Livro do Desassossego”, uma das obras fundadoras da ficção portuguesa no
século 20. Além de exímio poeta, Fernando Pessoa foi um grande criador de
personagens. Mais do que meros pseudônimos, seus heterônimos foram personagens
completos, com biografias próprias e estilos literários díspares. Álvaro de
Campos, por exemplo, era um engenheiro português com educação inglesa e com
forte influência do simbolismo e futurismo. Ricardo Reis era um médico defensor
da monarquia e com grande interesse pela cultura latina. Alberto Caeiro, embora
com pouca educação formal e uma posição anti-intelectualista (cursou apenas o
primário), é considerado um mestre. Com uma linguagem direta e com a
naturalidade do discurso oral, é o mais profícuo entre os heterônimos. São seus
“O Guardador de Rebanhos”, “O Pastor Amoroso” e os “Poemas Inconjuntos”. Em
virtude do tamanho, alguns poemas tiveram apenas trechos publicados. Eis a
lista baseada no número de citações obtidas.
Tabacaria
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser
nada.
À parte isso, tenho em
mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos
milhões do mundo.
que ninguém sabe quem é
( E se soubessem quem é,
o que saberiam?),
Dais para o mistério de
uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível
a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente
real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas
por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade
nas paredes
e cabelos brancos nos
homens,
Com o Destino a conduzir
a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como
se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como
se estivesse para morrer,
E não tivesse mais
irmandade com as coisas
Senão uma despedida,
tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens
de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha
cabeça,
E uma sacudidela dos meus
nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como
quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre
a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado
da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo
é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito
nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me
deram,
Desci dela pela janela
das traseiras da casa.
Poema em linha reta
Nunca conheci quem
tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos
têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles,
tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes
irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não
tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes
tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés
publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco,
mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido
enxovalhos e calado,
Que quando não tenho
calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico
às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o
piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito
vergonhas financeiras, pedido emprestado
[sem pagar,
Eu, que, quando a hora do
soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da
possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a
angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho
par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu
conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato
ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe
— todos eles príncipes — na vida…
Quem me dera ouvir de
alguém a voz humana
Que confessasse não um
pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma
violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal,
se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo
que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de
semideuses!
Onde é que há gente no
mundo?
Então sou só eu que é vil
e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não
os terem amado,
Podem ter sido traídos —
mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido
ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com
os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil,
literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho
e infame da vileza.
O guardador de rebanhos
Eu nunca guardei
rebanhos,
Mas é como se os
guardasse.
Minha alma é como um
pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das
Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza
sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como
um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da
planície
E se sente a noite
entrada
Como uma borboleta pela
janela.
Mas a minha tristeza é
sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na
alma
Quando já pensa que
existe
E as mãos colhem flores
sem ela dar por isso.
Como um ruído de
chocalhos
Para além da curva da
estrada,
Os meus pensamentos são
contentes.
Só tenho pena de saber
que eles são contentes,
Porque, se o não
soubesse,
Em vez de serem contentes
e tristes,
Seriam alegres e
contentes.
Pensar incomoda como
andar à chuva
Quando o vento cresce e
parece que chove mais.
Não tenho ambições nem
desejos
Ser poeta não é uma
ambição minha
É a minha maneira de
estar sozinho.
E se desejo às vezes
Por imaginar, ser
cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por
toda a encosta
A ser muita cousa feliz
ao mesmo tempo),
É só porque sinto o que
escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem passa
a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela
erva fora.
Ode marítima
Sozinho, no cais deserto,
a esta manhã de Verão,
Olho pró lado da barra,
olho pró Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro,
um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido,
clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante
atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã
entra com ele, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a
vida marítima,
Erguem-se velas, avançam
rebocadores,
Surgem barcos pequenos
detrás dos navios que estão no porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh’alma está com
o que vejo menos.
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a
Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo
desta Hora,
Com a doçura dolorosa que
sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar,
mas no espírito.
Olho de longe o paquete,
com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um
volante começa a girar, lentamente.
Os paquetes que entram de
manhã na barra
Trazem aos meus olhos
consigo
O mistério alegre e
triste de quem chega e parte.
Trazem memórias de cais
afastados e doutros momentos
Doutro modo da mesma
humanidade noutros pontos.
Todo o atracar, todo o
largar de navio,
É – sinto-o em mim como o
meu sangue -
Inconscientemente
simbólico, terrivelmente
Ameaçador de
significações metafísicas
Que perturbam em mim quem
eu fui…
Ah, todo o cais é uma
saudade de pedra!
E quando o navio larga do
cais
E se repara de repente
que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porquê,
uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos
de tristeza
Que brilha ao sol das
minhas angústias relvadas
Como a primeira janela
onde a madrugada bate,
E me envolve com uma
recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente
minha.
Autopsicografia
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é
dor
A dor que deveras sente.
E os que leem o que
escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não
têm.
E assim nas calhas de
roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
Aniversário
No tempo em que
festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém
estava morto.
Na casa antiga, até eu
fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a
minha, estava certa com uma religião qualquer.
No tempo em que
festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde
de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para
entre a família,
E de não ter as
esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter
esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a
vida, perdera o sentido da vida.
Sim, o que fui de suposto
a mim-mesmo,
O que fui de coração e
parentesco.
O que fui de serões de
meia-província,
O que fui de amarem-me e
eu ser menino,
O que fui — ai, meu
Deus!, o que só hoje sei que fui…
A que distância!…
(Nem o acho…)
O tempo em que festejavam
o dia dos meus anos!
O que eu sou hoje é como
a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas
paredes…
O que eu sou hoje (e a
casa dos que me amaram treme através das minhas
lágrimas),
O que eu sou hoje é terem
vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a
mim-mesmo como um fósforo frio…
No tempo em que festejavam
o dia dos meus anos…
Que meu amor, como uma
pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de
se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica
e carnal,
Com uma dualidade de eu
para mim…
Comer o passado como pão
de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!
Presságio
O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar pra ela,
Mas não lhe sabe falar.
Quem quer dizer o que
sente
Não sabe o que há de
dizer.
Fala: parece que mente…
Cala: parece esquecer…
Ah, mas se ela
adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe
bastasse
Pra saber que a estão a
amar!
Mas quem sente muito,
cala;
Quem quer dizer quanto
sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!
Mas se isto puder
contar-lhe
O que não lhe ouso
contar,
Já não terei que
falar-lhe
Porque lhe estou a falar…
Não sei quantas almas
tenho
Não sei quantas almas
tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me
estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho
alma.
Quem tem alma não tem
calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria
paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde
estou.
Por isso, alheio, vou
lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: “Fui eu?”
Deus sabe, porque o
escreveu.
Todas as cartas de amor…
Todas as cartas de amor
são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor
se não fossem
Ridículas.
Também escrevi em meu
tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.
As cartas de amor, se há
amor,
Têm de ser
Ridículas.
Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca
escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.
Quem me dera no tempo em
que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.
A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.
(Todas as palavras
esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)
O cego e a guitarra
O ruído vário da rua
Passa alto por mim que
sigo.
Vejo: cada coisa é sua
Oiço: cada som é consigo.
Sou como a praia a que
invade
Um mar que torna a
descer.
Ah, nisto tudo a verdade
É só eu ter que morrer.
Depois de eu cessar, o
ruído.
Não, não ajusto nada
Ao meu conceito perdido
Como uma flor na estrada.
Cheguei à janela
Porque ouvi cantar.
É um cego e a guitarra
Que estão a chorar.
Ambos fazem pena,
São uma coisa só
Que anda pelo mundo
A fazer ter dó.
Eu também sou um cego
Cantando na estrada,
A estrada é maior
E não peço nada.
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