Acordo ainda melancólico no alvor da manhã de estio, após ter lido à
noite As Ruínas da Glória. Um forte relato do poeta Fagundes Varela, tão
espantoso, acerca do que um dos seus amigos vira na vida de além-túmulo
inglória. O amigo Alberto vira o espectro de um espírito feminino a lhe
escorrer sangue no peito. Uma bela moça vestida de noiva que lhe chamava com
insistência; e ele, tão fascinado, e ao mesmo tempo, obsidiado pela aparição,
nutria uma vontade irresistível de ir ao seu encontro. O poeta, junto com dois
amigos, bebiam e conversavam à noite num botequim de beira de estrada, quando
de súbito, um homem de meia idade com aspecto de maltrapilho, entrara no
recinto pra comprar velas e uma garrafa de vinho. Enquanto aguardava ser
despachado, o homem ficou a observar os três mancebos (Varela, Alberto e José),
que se divertiam sorridentes, bebericando e fumando cachimbo. Não sabiam por
que, mas a figura medonha do homem lhes causou uma incômoda impressão. Depois
que ele saiu, indagaram ao dono do estabelecimento quem era ele, que lhes
respondera se tratar de um estranho, talvez um mendigo, que, sem ter para onde
ir, encontrou hospedagem gratuita nas ruínas da Glória, já que esta há algum
tempo, estava abandonada. Era noite chuvosa, tempestuosa, e os três boêmios,
movidos por descabida curiosidade, resolveram visitar o estranho morador da
velha igreja em ruínas, na qual, além dele, era também habitada por insetos,
répteis, morcegos, e, quem sabe, por almas do outro mundo. Diante do imóvel
arruinado, Alberto, o que pareceu ser o mais corajoso, entrou primeiro. Os
outros dois, a princípio, hesitaram entrar, temerosos de que pudessem encontrar
algo de ruim, de mau agouro lá dentro; mas não queriam deixar que o amigo
seguisse sozinho, uma vez que o desejo de visita era dos três; e, alguns
instantes após, também entraram, tendo a sensação de serem empurrados porta
adentro por uma força sobrenatural. Claro, que o ambiente interno era bem
desagradável, desolado, com cheiro nauseabundo, além de terem que andar em meio
à funérea escuridão. Em vão começaram a chamar pelo amigo Alberto, sem obter-lhe
nenhuma resposta. Onde estaria ele? Por que não respondia aos chamados?
Insistiram em chamá-lo. Apenas o eco de um silêncio profundo lhes chegava aos
ouvidos. Desesperados, não sabiam mais o que fazer pra encontrar o amigo
perdido naquela pavorosa escuridão. E pensaram: que ideia mais tola, fazer uma
visita a alguém que não conheciam naquela hora da noite, num lugar que mais
perecia um cemitério, por mera curiosidade. Já estavam arrependidos, mas não
podiam ir embora sem saberem o paradeiro do amigo. Já sem dada esperança de
encontrá-lo, no entanto, uma parca luz de vela clareou onde se achavam; e o que
viram em seguida, aparecer na soleira de uma porta, foi a figura horrível e
andrajosa do único habitante encarnado daquelas ruínas; e os dois amigos, tão
extasiados, não sabiam, naquele momento, se ficavam alegres ou tristes, ante a
sua inesperada presença; já que, o que mais queriam era ter o querido amigo
Alberto junto deles. Ao indagarem ao homem acerca do amigo ali desaparecido,
deste, não obtiveram nenhuma resposta que lhe satisfizessem; somente lhes
dissera que não deviam ter vindo naquelas horas, àquele local tão ermo, no qual
há trinta anos todas as noites, reproduzia-se ali, um drama de lágrimas e de
sangue. Causador da tragédia que vitimou a própria filha, já que ele próprio a
esfaqueou mortalmente no peito, quando ela estava prestes a se casar; só depois
da infeliz ação praticada, foi que percebeu o grande mal que fez a um ente
querido da família. Desde então, o remorso lhe corrói a alma; e há dez anos que
ele vem àquele local onde a filha está sepultada, tentando em vão obter-lhe o
perdão. Por isso, não queria que ninguém ficasse ali, sobretudo, naquelas horas
mortas, pra não ouvir os gemidos horríveis de quem ainda sofria muito do outro
lado da vida. Temendo isso, o desconhecido decidiu logo ajudar os dois amigos a
encontrarem o amigo perdido em qualquer um daqueles aposentos frios e sombrios.
Somente uma vela no castiçal alumiava os corredores e salões daquele convento
arruinado, por onde os três homens transitavam cautelosos e atentos a algum
sinal da presença de Alberto. E foi assim que, após dado tempo, ouviram um
forte gemido clamoroso vindo de um daqueles aposentos. Varela e José se
assustaram. Mas o solitário habitante daquelas ruínas, não. Já estava
acostumado a ouvir aqueles clamores tão sofridos. E parecia mesmo já saber de
onde os gemidos tinham vindo. Adiantou-se, deixando os dois amigos um pouco
atrás, entrou por uma porta e clareou o recinto, de onde puderam ver um jazigo
e sobre ele, Alberto estava debruçado. Ao vê-lo, os dois amigos o pegaram,
soerguendo-o. Alberto, muito assustado e com os olhos arregalados, parecia
delirar, pronunciando palavras desconexas. Vendo que o amigo estava fraco e
quase desmaiado, rapidamente o tiraram dali. Chegando a casa, cuidaram logo de
providenciar um médico para atendê-lo, que tremia sobre a cama em alto estado
febril. Delirando, ele repetia palavras suplicantes e parecia invocar alguém
que supunha ver, pressionando as mãos no peito como se quisesse revelar uma
grave chaga aberta, cujo sangue jorrava sem parar. Tão agoniado, e sem poder
diminuir o sofrimento alheio, cuja cena presumia ver à sua frente, caía de novo
desmaiado sobre a cama ensopado de suor. Ansioso para que o médico chegasse com
José que o havia ido buscar, Varela ficou ali no quarto por certo tempo,
velando o amigo, temendo que o pior lhe pudesse ocorrer: a sua morte! Por fim,
o doutor chegou e prestou-lhe os primeiros socorros. Disse que, apesar do seu
estado de fraqueza orgânica, mais parecia tratar-se de um caso de alucinação.
Algo que o moço vira e que muito o impressionara. Nesse caso, receitaria apenas
o remédio pra baixar a febre, além do repouso por alguns dias, para que pudesse
voltar a se alimentar normalmente; senão, poderia morrer por inanição,
resultante da visão alucinante que tivera, abalando profundamente o seu
psiquismo. Muito preocupado com o estado do amigo, Varela contou ao doutor o
que tinha ocorrido com eles nas ruínas da Glória. Sobretudo, com o amigo
enfermo. E quis saber dele, se realmente todo aquele drama tinha alguma coisa a
ver com a vida de além-túmulo. Ao que o doutor, a despeito de ser um homem de
ciência, cria também nas coisas do espírito, na vida depois da morte física,
era leitor de assuntos espirituais, se considerando assim, um tanto
espiritualista. Portanto, respondeu-lhe que a crença no mundo dos espíritos tem
existido em todos os povos, em todas as gerações. Citando os espíritos Santo
Agostinho e Legendre, abordando em seus livros, Cidade de Deus e Tratado da
Opinião, que negar o prestígio dos demônios e dos espíritos é não crer na
Escritura Santa. E continua lhe explicando que a Bíblia fala da aparição de
Samuel e muitos outros fatos sobrenaturais. Que Calígula, depois de
assassinado, errava em seu palácio à noite, sob a forma de uma larva gemedora.
Afirmando também, a razão nos revelar claramente que após esta vida haverá um
lugar de recompensa e outro de punição; a depender do grau moral de cada um. Os
bons seriam contemplados com uma vida nova num planeta de delícias morais. E os
maus, com o castigo de errarem por dado tempo, até que resgatem as suas faltas,
reabilitando-se para seguirem pelos bons caminhos de suas depurações
conscienciais. Gostando de suas explicações, que até então, não o sabia ser
conhecedor de assuntos espiritualistas, quis que o mesmo lhe tirasse mais uma
dúvida, indagando-lhe acerca de que culpa tem os vivos em tudo isto, para serem
perseguidos pelas sombras e aparições? Replicando-o, disse-lhe que os espíritos
também são muitas vezes emissários da divindade; ora é para punir um malfeitor
que eles aparecem; ora, para um aviso celeste; ora, enfim, para aliviar muitos
sofrimentos. Assim, aos assassinos, aparecem as sombras de suas vítimas; aos
virtuosos, o espectro do finado que lhes vêm pedir orações; aos mancebos, a
imagem de suas noivas ou amantes, morta na flor dos anos... A conversa estava
interessante, porém, fora interrompida
ao ouvirem o gemido de Alberto que se soerguia do travesseiro com a boca
espumante, os braços estendidos, os olhos inflamados e sanguinolentos, olhando
fixamente para o fundo do aposento, a murmurar: - Vem! Vem!... – Oh! Dá-me um
pouco de tua branca veste, anjo de asas douradas e diadema de luz!... – Leva-me
contigo para o país dos sonhos eternos. Vem porque minha alma chora de amores
por ti! Cada vez mais preocupado com o estado de saúde do amigo, Varela, no
entanto, entendia que o doutor não podia fazer por ele, além do que já tinha
feito; só lhe restando aguardar, ou a sua melhora gradual, ou a sua piora
fatal. Já era tarde da noite, quando de súbito, ouviram um ruído estranho no
fundo do recinto, que se fez mais nítido como se fossem passos vindos na
direção deles. Os dois homens se arrepiaram. O médico levantou-se e foi dar uma
olhada pra ver se via algo, clareando o fundo com a vela no castiçal, voltando
depois dizendo que não tinha visto nada. E ficaram ali, por alguns instantes
pensativos, quem sabe orando, para que aquele mau presságio passasse. Alguns
dias se passaram. Alberto parecia ter melhorado. Não mais delirava. Estava sem
febre. Mas a sua aparência era de um homem pálido, magro, vitimado por algo que
lhe abalara profundamente a razão. Numa noite, depois que o doutor viera vê-lo,
despediu-se dizendo que precisava voltar à sua casa para dar algumas
instruções. Varela pediu que José o acompanhasse. Ficando a sós com o amigo
convalescente; este, contemplando-o com os olhos tristes, tomou-lhe uma das
mãos lhe dizendo que não mais se levantaria daquele leito. Precisando assim,
contar-lhe tudo antes que a morte o chamasse. Nem o otimismo de Varela, lhe
dizendo que o pior já tinha passado; que ele não mais corria risco de morte;
que dali pra frente tudo voltaria a ser como antes era em sua vida de moço
saudável, para gozá-la com todo o vigor de sua juventude, lhe devolvera a
força, a alegria de viver. Acomodou-se na cama e contou-lhe tudo o que lhe
ocorrera naquela noite nas ruínas da Glória. Desde o momento de sua dispersão,
andando sem rumo pelos corredores e salões arruinados, até ser atraído por um
clarão suave, onde um belo vulto de mulher lhe apareceu estendendo-lhe os
braços. Olhava-a como se tivesse vendo um ser angélico, lhe admirando os
cabelos longos, a tez branca como a neve, a linda grinalda de cipreste, os
olhos puros e meigos; contudo, um lado do vestido estava caído e um dos seios
se mostrava esfacelado e envolto por uma negra mancha de sangue que escorria
aos borbotões da grande ferida que lhe ensopava a vestimenta. A bela mulher o
chamava e ele, tão fascinado, ficava ali, estático, ouvindo aquela voz
melodiosa, a repetir várias vezes: “Vem! Vem! Vem!” Para ele, tanto a visão
como a voz dela eram tão nítidas que lhe pareciam reais. E ele começou a sentir
deliciosos arrepios pelo corpo, uma sensação de bem-estar interior que lhe
impelia a querer ir ao seu encontro; e chegou mesmo, num ímpeto, a estender-lhe
também o braço, dando um passo à frente; porém, repentinamente, tudo
desapareceu como se nunca tivesse visto aquela aparição; mas a verdade é que
ele tinha visto sim, não fora uma ilusão de sua consciência; ficara tão
atordoado ante aquele ato inusitado, que caíra desmaiado, só acordando quando
os amigos o acharam. Alberto falava, mas, a sua voz era pausada e cansada.
Respirou por um momento. Depois continuou explicando ao amigo, que todas as
noites a vê, sempre bela apesar de estar ensanguentada. Sem saber por qual
motivo, já a ama demais. Sabe que ela precisa dele, por isso o chama sem parar.
Que ele não pode mais viver sem ela, sem o seu amor. Há uma voz lhe dizendo que
a sua morte está próxima. E morrendo, será eternamente feliz. Varela tentou
argumentar mais uma vez, mas Alberto lhe disse que não queria mais viver. Com
ar de desânimo, recostou o rosto no travesseiro, imergindo rápido num sono
profundo. Quando o doutor chegou à noite do outro dia para vê-lo, encontrou-o
dormindo, num sono tranquilo. Então, o examinou cuidadosamente: ouviu-lhe a
respiração, passou-lhe a mão na testa, tomou o pulso e voltando-se para Varela,
disse-lhe: “Sabes uma coisa? Vosso amigo está salvo!” Imensa foi a alegria do
amigo que fazia a função de enfermeiro, cuidando dele desde o início de sua
infeliz situação. De imediato agradeceu o médico pelos seus serviços e pelos
dias de dedicação na recuperação do amigo, que realmente parecia estar bem de
saúde. Só que Alberto, embora tenha sido visível a sua melhora física, não
houvera, entretanto, a melhora psíquica. Se alimentava muito pouco, e a sua
rotina se resumia em dormir e acordar sobressaltado, presumindo vê a mesma
aparição. Dias depois, de manhã cedo, Varela fora acordado pelo criado, a lhe
dizer que Alberto morria. Sem crer, logo correu ao quarto, achando-o sentado na
cama, todo molhado de suor, com os olhos arregalados e apontando para um ponto
do recinto, dizendo que a bela mulher o chamava sem trégua, só lhe restando
morrer para poder de fato estar com ela na eternidade. Tanto ela o fascinava
como o obsidiava. Pressentindo mesmo que o seu fim estava próximo, despediu-se
do amigo lhe dizendo: “Adeus, meu grande amigo, a morte me chama.” “No entanto,
quantas saudades não levo eu deste mundo!” “Quanta amargura não tenho agora na
alma!” Alberto falava quase murmurando e as lágrimas de despedida lhe escorriam
dos olhos avermelhados. Em sua fraqueza psíquica decorrente da obsessão, ainda
teve forças pra balbuciar as últimas palavras: “Oh! Não os terei mais junto de
mim nessa hora suprema! Oh! Meu pai! Oh! Minha mãe! Não vou nem poder dar-lhes
o último abraço!” Por alguns poucos minutos, calou-se. O moribundo moço
ofegava. Retirando lentamente a mão das mãos do amigo, disse-lhe num sussurro:
“Adeus, adeus!” E, depois de um forte suspiro, o suspiro da morte, tombou já
sem vida carnal sobre a cama. Passados dois anos, Varela ainda sentia-se desolado,
pela falta que o amigo Alberto lhe fazia. Quanto ao outro amigo, o José,
conforme lhe disseram, partiu, mas não souberam lhes dizer pra onde. Numa tarde
de verão, sem saber por que, Varela fora visitar um hospício nos arredores de
São Paulo. Dentre os loucos, um homem de aspecto horripilante lhe despertara a
atenção. Não sabia por que, mas parecia conhecê-lo. O seu olhar era sinistro e
medonho; os seus dentes cerrados rangiam como os de um animal feroz. Perguntou
ao guarda que o seguia quem era aquele homem? Ao que lhe respondera: “ É um
homem estranho. Dizem que em um acesso de furor, dera uma facada em uma filha
jovem e em véspera de casar-se. Iniciara a sua loucura fugindo dos homens e da
sociedade, além de ter morado durante três anos nas ruínas da Glória.” Após
ouvir aquelas explicações, Varela sabia por que o havia reconhecido: era ele
sim, o hóspede das ruínas. Imediatamente, todo o drama sombrio do passado
voltara-lhe à memória. E fora com lágrimas nos olhos que ele saíra dali correndo
como um louco do hospício.
ADENDO:
As Ruínas da Glória é um relato contido no Livro Escritores e Fantasmas,
de Jorge Rizzini, que trata de expor fatos espíritas verídicos, sucedidos nas
vidas de alguns famosos escritores brasileiros e estrangeiros. Ao invés de
transcrever o original, escrito num estilo parnasiano, preferi reescrevê-lo
numa versão moderna, oferecendo ao amado leitor, a minha peculiar explicação ao
fato ocorrido, narrado pelo exuberante e romântico poeta Fagundes Varela,
certamente entre 1860 e 1874, segundo o autor do livro. Para mim, foi uma
tarefa prazerosa de superação, reescrever esse texto relevante de nossa
literatura. Desde já, peço desculpa ao querido leitor se o texto reescrito, não
ficou a altura do texto original. De qualquer modo, acho que, o leitor, lendo o
que reescrevi, terá uma noção lógica do fato contado pelo ilustre poeta
parnasiano Fagundes Varela. Muito grato a todos.
Escritor Adilson Fontoura
http://www.recantodasletras.com.br/autores/morenoiliterato
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