Federico García Lorca, escritor militante
fuzilado pelas tropas franquistas
"Deixaria neste livro/ toda a minha
alma./ Este livro que viu/ as paisagens comigo/ e viveu horas santas./ Que pena
dos livros/ que nos enchem as mãos/ de rosas e de estrelas/ e lentamente
passam! (...)" Este belo poema de Garcia Lorca chama-se
"Prólogo" e foi traduzido por William Agel de Melo.
O poeta Federico García Lorca nasceu na região
de Granada, na Espanha, e levou para sua poesia muito da paisagem e dos
costumes de sua terra natal.
Estudou direito e letras na Universidade de
Granada. Seu primeiro livro foi publicado em 1918, com o título
"Impressões e Paisagens". No ano seguinte, Garcia Lorca mudou-se para
Madri, onde viveu até 1928. Em Madri tornou-se amigo de vários artistas, como
Luis Bu?uel, Salvador Dali e Pedro Salinas. Em 1920 estreou no teatro, com a
peça "O Malefício da Mariposa", e em 1921 publicou "Livro de
Poemas".
García Lorca viveu dois anos em Nova York. De
volta à Espanha, em 1931, criou a companhia teatral "La Barraca", que
passou a se apresentar por todo país encenando autores clássicos espanhóis,
como Lope de Vega e Cervantes. Tornou-se também um grande dramaturgo, e criou
peças que ficaram conhecidas no mundo inteiro. Entre suas obras mais encenadas
estão "Bodas de Sangue", "Yerma" e "A Casa de Bernarda
Alba".
Como poeta, Lorca publicou mais de uma dezena
de livros, entre eles "Romance Cigano", "Poeta em Nova
York", "Seis Poemas Galegos" e "Cantares Populares". A
poesia de Garcia Lorca é simples e direta, e seu estilo doce e comovente tem
encantado gerações de leitores. Sua poesia tocante também registrou o modo de
viver das pessoas mais simples e buscou resistir contra todo tipo de opressão.
Em 1936, ano da eclosão da Guerra Civil
Espanhola, Federico García Lorca foi preso. Fuzilado por militantes
franquistas, tornou-se símbolo da vítima dos regimes totalitários.
ALGUNS POEMAS DE LORCA
SONETO DA CARTA
Tradução de Afonso Félix de Sousa
Amor, que a vida em morte em mim convertes,
espero em vão tua palavra escrita
e, flor a se murchar, meu ser medita
que se vivo sem mim quero perder-te.
É infinito o ar. A pedra inerte
nada sabe da sombra e não a evita.
Íntimo, o coração não necessita
do congelado mel que a lua verte.
Por ti rasguei as veias às dezenas,
tigre e pomba, cobrindo-te a cintura
com luta de mordiscos e açucenas.
Tuas palavras encham-me a loucura
ou deixa-me viver minha serena
e infinda noite da alma, escura, escura.
ALMA AUSENTE
Tradução
de Antonio Miranda
Não te conhece o touro nem a figueira,
nem cavalos nem formigas de tua casa.
Não te conhece o menino nem a tarde
porque já morreste para sempre.
Não te conhece o lombo da pedra,
Nem o raso negro onde te destroças.
Não te conhece a lembrança muda
Porque já morreste para sempre.
O outono virá com suas conchas,
uva de névoa e montes agrupados,
mas ninguém virá olhar teus olhos
porque já morreste para sempre.
Porque já morreste para sempre,
como todos os mortos da Terra,
como todos os mortos esquecidos
em um monte de cães apagados.
Ninguém te reconhece. Não. Mas eu te louvo.
Eu canto desde já teu perfil e tua graça.
A madurez insigne de teu conhecimento.
Tua apetência de morte e o gosto de sua boca.
A tristeza que teve tua valente alegria.
Tardará muito tempo em nascer, se é que nasce,
um andaluz tão claro, tão pleno de ventura.
Eu canto sua elegância com palavras que gemem
e relembro uma brisa triste pelas oliveiras.
PAISAGEM COM DUAS TUMBAS E UM CÃO ASSÍRIO
Tradução
de Antonio Miranda
Amigo,
levanta para que ouças latir
o cão assírio.
As três ninfas do câncer estiveram dançando,
filho meu.
Trouxeram umas montanhas de lacre rubro
e uns lençóis duros onde estava o câncer dormido.
O cavalo tinha um olho no pescoço
E a lua estava no céu tão frio
que teve de desgarrar-se seu monte de Vênus
e afogar em sangue e cinza os cemitérios antigos.
Amigo,
desperta, que os montes ainda não espiram
e as ervas de meu coração estão em outro lugar.
Não importa que estejas repleto de água do mar.
Eu amei muito tempo um menino
que tinha cem anos dentro de um punhal.
Desperta. Cala. Escuta. Incorpora-te um pouco.
O uivo
é uma longa língua arroxeada de deixa
formigas de espanto e licor de lírios.
Já vem até a rocha. Não alongues tuas raízes!
Aproxima-te. Geme. Não soluces em sonhos, amigo.
Amigo!
Levanta para que ouças uivar
o cão assírio.
De Poeta en Nueva York, 1940.
ROMANCE SONÂMBULO
Tradução de Salomão Sousa
Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramos.
O barco sobre o mar
e o cavalo na montanha.
Com a sombra na cintura,
ela sonha na varanda
verde carne, cabelo verde,
com olhos de fria prata.
Verde que te quero verde.
Debaixo da lua cigana,
as coisas a estão olhando
e ela não pode olhá-las.
***
Verde que te quero verde.
Grandes estrelas de escarcha
vêm com o peixe de sombra
que abre o caminho da alba.
A figueira arranha o vento
com a lixa de seus ramos
e o monte, gato matreiro,
eriça suas fibras acres.
Mas quem virá? e por onde?¼
Ela continua na varanda,
verde carne, cabelo verde,
sonhando no mar amargo.
***
Compadre, quero trocar
meu cavalo por sua casa,
meu arreio pelo espelho,
minha faca por sua manta.
Compadre, venho sangrando
desde os portos de Cabra.
Se eu pudesse, seu moço,
este trato se fechava.
Mas eu já não sou eu
nem já é minha a minha casa.
Compadre, quero morrer
decentemente em minha cama.
De arma branca, pode ser,
com os lençóis de holanda.
Não vês a ferida que tenho
do peito até a garganta?
Trezentas rosas morenas
leva teu peitilho branco.
Teu sangue respinga e cheira
ao redor de tua faixa.
Mas eu já não sou eu.
Nem já é minha a minha casa.
Deixai-me subir ao menos
até as altas varandas:
deixai-me subir!, deixai-me
até as verdes varandas!
Avarandados da lua
por onde estronda a água¼
***
Já sobem os dois compadres
até as altas varandas.
Deixando um rastro de sangue.
Deixando um rastro de lágrimas.
Tremulavam nos telhados
pequenos faróis de lata.
Mil pandeiros de cristal
feriam a madrugada.
***
Verde que de quero verde.
Vento verde. Verdes ramos.
Os dois compadres subiram.
O longo vento deixava
na boca um gosto raro
de fel, de menta e alfavaca.
Compadre! Onde está, dize-me?
Onde está tua menina amarga?
Quantas vezes te esperou!
Quantas vezes te esperara,
de cara alegre, cabelo alegre,
nesta verde varanda!
***
Sobre a boca da cisterna
a cigana tremia.
Verde carne, cabelo verde,
com olhos de fria prata.
O gelo da lua, em pedaços,
ampara-a sobre a água.
A noite se tornou íntima
como uma pequena praça.
Guardas-civis bêbados
na porta golpeavam.
Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramos.
O barco sobre o mar.
E o cavalo na montanha.
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