Há quinze anos, Seu José perambulava pelas
ruas daquela cidade como mendigo. Ninguém sabia informar se ele era dali ou
viera de fora. Apenas o viam, todos os dias úteis da semana, às primeiras horas
da manhã, cumprindo pontualmente o seu modesto e penoso ofício: o ato de
mendigar pelas ruas pedindo auxílio pra sobreviver. Aparecera de repente, numa
manhã de sábado, de corona, em cima de uma carroça cheia de ossos fétidos. O
carroceiro, antes de descarregar os ossos, tivera a gentileza de deixá-lo no
meio de uma das feiras livres da cidade, e Seu José, depois de agradecê-lo,
começara ali a sua vida ordinária de mendigo. A feira livre não era o lugar
predileto pra Seu José exercer o seu ofício de mendigar, porque, sendo um lugar
público, todos iam para ali comprar as suas coisas, e alguém conhecido dele
poderia reconhecê-lo, ou melhor, alguém que ele não queria que o visse naquela
sub-condição de vida, por vergonha ou outro motivo qualquer, o fato é que Seu
José preferia pedir pelas beiradas da feira, ou pelos setores de pouco trânsito
das pessoas. Raramente alguém o reconhecia. Quando ocorria de alguém
reconhecê-lo, era mendigo como ele; ou então, alguém acostumado a dar esmola
pra ele e estava ali na feira comprando as coisas que precisava e que, em
alguns dias da semana, uma pequena parte dessas coisas, seria dada como esmola
a algum mendigo, inclusive para Seu José, que era um mendigo diferente. As
pessoas olhavam-no com muita pena. Ninguém lhe negava uma esmola. Ele andava
bem devagar, mancando, apoiado numa muleta rústica embaixo da axila esquerda, e
a mão direita, a segurar firme um pau roliço pequeno em posição horizontal, que
servia de ele aos dois paus roliços maiores, em posição vertical da muleta. A
mão direita estava sempre ocupada a segurar um saco sujo e surrado apoiado em
suas costas, onde ele colocava as coisas que as pessoas lhe davam.
O que diferenciava Seu José dos outros mendigos, era também uma enorme ferida em sua perna esquerda, coberta com gazes e esparadrapos sujos e mais uns panos velhos, de onde era visível o corrimento de sangue misturado com pus, além das cascas decompostas da ferida. Sobre a sua cabeça, um chapéu de palha de aba larga que ele nunca o tirava; talvez porque fosse careca ou com medo de alguém reconhecê-lo. A barba estava sempre por fazer. As roupas eram velhas e rasgadas. Usava umas sandálias pretas de borracha, que, além de gastas, eram maiores do que os seus pés. A magreza, a palidez, e o cheiro nauseabundo do suor, lhe completavam o estado tétrico de degradação humana. Ninguém o via mendigando no centro da cidade. Ele sabia que a maioria das pessoas que por ali transitavam, vestiam-se bem e eram cheirosas; decerto, quando o vissem com aquela chaga horrorosa e fétida na perna esquerda, não parariam pra lhe oferecer alguma ajuda. Ele gostava mesmo era de andar e pedir nos bairros mais pobres, nas favelas, naquelas ruas de chão batido e barracos de madeira, onde as pessoas, sendo mais humildes e carentes, mesmo tendo muito pouco, tendem a serem mais piedosas. Ninguém compreendia como Seu José, com aquele incômodo físico, aguentava andar durante todo o dia e todos os dias (exceto no domingo). Para aquelas pessoas que o viam passar naquela penitência diária, a suportar todo aquele sofrimento, tinham a certeza que Deus a todo o momento protegia-o com a Sua Misericórdia, pra que ele pudesse, mesmo com aquela chaga numa das pernas, andar com a sua lentidão, na busca do pão de cada dia. Tinha dia que algum morador, demonstrando uma mistura de compaixão com nojo de sua ferida, cedia a porta de sua casa pra Seu José sentar-se por alguns instantes, pro gozo de um merecido descanso. Claro que não seria agradável a sua presença ali sentado. O mau cheiro seria insuportável, porém, prazeroso pras moscas, que teriam um motivo oportuno pra efetivarem ali as suas presenças nojentas. Algumas vezes, principalmente próximo do meio-dia, Seu José parava e aproveitava pra comer um pouco. As pessoas que passavam e o olhavam, sentiam repugnância. Cuspiam no chão. Viravam os rostos pra qualquer direção, exceto, pra onde o mendigo estava sentado. E ele, absorto e indiferente ao que as pessoas pensavam dele, ficava ali, comendo meio sem vontade, às vezes olhando pra alguma coisa que lhe despertara interesse, ou só olhando pra comida que vagarosamente comia. Pelo fato de Seu José já ser muito conhecido por uma boa parte dos moradores por onde ele transitava, várias pessoas ficavam curiosas pra saberem se o mendigo era dali ou de fora; onde ele realmente morava; se tinha família ou era sozinho; se utilizava bem ou mal os auxílios que recebia diariamente. Afinal, as pessoas davam as coisas dentro do alcance delas, mas sempre davam alguma coisa, como dinheiro, roupas usadas, alimentos, calçados, etc. Demonstravam curiosidade, porque do mesmo jeito que ele chegava de repente, às primeiras horas da manhã, quase às escuras também ia embora, sem ninguém saber como e pra onde ela ia. Uma dessas pessoas era Se Manoel, dono de uma panificadora localizada na praça de um dos bairros populares por onde Seu José andava. Seu Manoel era muito bondoso com os mendigos. Três vezes por semana em dias alternados, ele os reunia na praça, e oferecia-lhes o café da manhã completo. Os mendigos ficavam contentes com a sua generosidade, e dificilmente falhavam nos dias determinados, afinal, era uma preciosa refeição para aquelas pessoas marcadas pela má sorte na vida, que não tinham uma alimentação regular e saudável todos os dias. Numa tarde de sexta-feira quase à boca da noite, Seu Manoel, movido por uma curiosidade natural, resolvera seguir um daqueles mendigos, e, por coincidência, era Seu José quem seguia na sua frente com os passos vagarosos de sempre. A princípio, Seu Manoel não estranhara nada. Atento pra não perdê-lo de vista, com toda paciência seguia-o, conservando certa distância. Resolvera tomar aquela atitude, porque alguma coisa fazia-o pensar que havia algo de errado com aquele mendigo, só não sabia o quê. Atravessaram dois bairros populares, e, à saída da cidade, próximo a um posto de venda de combustível, Seu Manoel ficara boquiaberto com o que vira: um carro estava estacionado e Seu José dele se aproximava. Então, o mendigo tirara uma chave do bolso e abrira o porta-malas do carro. Desconfiado, olhara pra um lado, pra outro, verificando se havia alguém conhecido por perto. Não havendo, começara depressa a desfazer-se de sua situação de mendigo. Ele usava a perna esquerda da calça arregaçada até a altura do joelho, deixando exposta a horripilante ferida. Com todo cuidado tirou-a (a ferida era suposta), pondo-a no porta-malas. Guardara também o chapéu de palha (ele era careca), as sandálias de borracha, penteara um pouco a barba grande e embaraçada, calçara um tênis, olhara de novo pra um canto e pra outro, e por fim, dera a partida e seguira a sua viagem. Ao vê-lo partindo, Se Manoel aproveitara a passagem de um táxi e seguira-o. A próxima cidade ficava a trinta quilômetros. No caminho, ia pensando: “ Por que aquele homem agia daquela forma? Por que se submetia àquela vida de mendigo se não o era? Por que se disfarçava daquele modo, se não precisava pedir esmola pra sobreviver? Naquela idade já devia estar aposentado. E não devia ser uma magra aposentadoria de um ou dois salários mínimos; certamente seria de dez salários mínimos em diante “. Eram perguntas que Seu Manoel fazia a si mesmo, mas só poderia obter as respostas quando chegasse à próxima cidade. Seu José estacionara o carro em frente a um belo edifício situado num bairro nobre. Ao vê-lo, o porteiro cumprimentou-o e, de imediato, acionou o dispositivo para abertura da garagem. Seu José acenou-lhe agradecendo e entrou. Seu Manoel, ainda dentro do táxi, estacionado a poucos metros dali, pedira pro taxista aguardá-lo. Dirigira-se ao porteiro e com delicadeza, interpelou-lhe:
O que diferenciava Seu José dos outros mendigos, era também uma enorme ferida em sua perna esquerda, coberta com gazes e esparadrapos sujos e mais uns panos velhos, de onde era visível o corrimento de sangue misturado com pus, além das cascas decompostas da ferida. Sobre a sua cabeça, um chapéu de palha de aba larga que ele nunca o tirava; talvez porque fosse careca ou com medo de alguém reconhecê-lo. A barba estava sempre por fazer. As roupas eram velhas e rasgadas. Usava umas sandálias pretas de borracha, que, além de gastas, eram maiores do que os seus pés. A magreza, a palidez, e o cheiro nauseabundo do suor, lhe completavam o estado tétrico de degradação humana. Ninguém o via mendigando no centro da cidade. Ele sabia que a maioria das pessoas que por ali transitavam, vestiam-se bem e eram cheirosas; decerto, quando o vissem com aquela chaga horrorosa e fétida na perna esquerda, não parariam pra lhe oferecer alguma ajuda. Ele gostava mesmo era de andar e pedir nos bairros mais pobres, nas favelas, naquelas ruas de chão batido e barracos de madeira, onde as pessoas, sendo mais humildes e carentes, mesmo tendo muito pouco, tendem a serem mais piedosas. Ninguém compreendia como Seu José, com aquele incômodo físico, aguentava andar durante todo o dia e todos os dias (exceto no domingo). Para aquelas pessoas que o viam passar naquela penitência diária, a suportar todo aquele sofrimento, tinham a certeza que Deus a todo o momento protegia-o com a Sua Misericórdia, pra que ele pudesse, mesmo com aquela chaga numa das pernas, andar com a sua lentidão, na busca do pão de cada dia. Tinha dia que algum morador, demonstrando uma mistura de compaixão com nojo de sua ferida, cedia a porta de sua casa pra Seu José sentar-se por alguns instantes, pro gozo de um merecido descanso. Claro que não seria agradável a sua presença ali sentado. O mau cheiro seria insuportável, porém, prazeroso pras moscas, que teriam um motivo oportuno pra efetivarem ali as suas presenças nojentas. Algumas vezes, principalmente próximo do meio-dia, Seu José parava e aproveitava pra comer um pouco. As pessoas que passavam e o olhavam, sentiam repugnância. Cuspiam no chão. Viravam os rostos pra qualquer direção, exceto, pra onde o mendigo estava sentado. E ele, absorto e indiferente ao que as pessoas pensavam dele, ficava ali, comendo meio sem vontade, às vezes olhando pra alguma coisa que lhe despertara interesse, ou só olhando pra comida que vagarosamente comia. Pelo fato de Seu José já ser muito conhecido por uma boa parte dos moradores por onde ele transitava, várias pessoas ficavam curiosas pra saberem se o mendigo era dali ou de fora; onde ele realmente morava; se tinha família ou era sozinho; se utilizava bem ou mal os auxílios que recebia diariamente. Afinal, as pessoas davam as coisas dentro do alcance delas, mas sempre davam alguma coisa, como dinheiro, roupas usadas, alimentos, calçados, etc. Demonstravam curiosidade, porque do mesmo jeito que ele chegava de repente, às primeiras horas da manhã, quase às escuras também ia embora, sem ninguém saber como e pra onde ela ia. Uma dessas pessoas era Se Manoel, dono de uma panificadora localizada na praça de um dos bairros populares por onde Seu José andava. Seu Manoel era muito bondoso com os mendigos. Três vezes por semana em dias alternados, ele os reunia na praça, e oferecia-lhes o café da manhã completo. Os mendigos ficavam contentes com a sua generosidade, e dificilmente falhavam nos dias determinados, afinal, era uma preciosa refeição para aquelas pessoas marcadas pela má sorte na vida, que não tinham uma alimentação regular e saudável todos os dias. Numa tarde de sexta-feira quase à boca da noite, Seu Manoel, movido por uma curiosidade natural, resolvera seguir um daqueles mendigos, e, por coincidência, era Seu José quem seguia na sua frente com os passos vagarosos de sempre. A princípio, Seu Manoel não estranhara nada. Atento pra não perdê-lo de vista, com toda paciência seguia-o, conservando certa distância. Resolvera tomar aquela atitude, porque alguma coisa fazia-o pensar que havia algo de errado com aquele mendigo, só não sabia o quê. Atravessaram dois bairros populares, e, à saída da cidade, próximo a um posto de venda de combustível, Seu Manoel ficara boquiaberto com o que vira: um carro estava estacionado e Seu José dele se aproximava. Então, o mendigo tirara uma chave do bolso e abrira o porta-malas do carro. Desconfiado, olhara pra um lado, pra outro, verificando se havia alguém conhecido por perto. Não havendo, começara depressa a desfazer-se de sua situação de mendigo. Ele usava a perna esquerda da calça arregaçada até a altura do joelho, deixando exposta a horripilante ferida. Com todo cuidado tirou-a (a ferida era suposta), pondo-a no porta-malas. Guardara também o chapéu de palha (ele era careca), as sandálias de borracha, penteara um pouco a barba grande e embaraçada, calçara um tênis, olhara de novo pra um canto e pra outro, e por fim, dera a partida e seguira a sua viagem. Ao vê-lo partindo, Se Manoel aproveitara a passagem de um táxi e seguira-o. A próxima cidade ficava a trinta quilômetros. No caminho, ia pensando: “ Por que aquele homem agia daquela forma? Por que se submetia àquela vida de mendigo se não o era? Por que se disfarçava daquele modo, se não precisava pedir esmola pra sobreviver? Naquela idade já devia estar aposentado. E não devia ser uma magra aposentadoria de um ou dois salários mínimos; certamente seria de dez salários mínimos em diante “. Eram perguntas que Seu Manoel fazia a si mesmo, mas só poderia obter as respostas quando chegasse à próxima cidade. Seu José estacionara o carro em frente a um belo edifício situado num bairro nobre. Ao vê-lo, o porteiro cumprimentou-o e, de imediato, acionou o dispositivo para abertura da garagem. Seu José acenou-lhe agradecendo e entrou. Seu Manoel, ainda dentro do táxi, estacionado a poucos metros dali, pedira pro taxista aguardá-lo. Dirigira-se ao porteiro e com delicadeza, interpelou-lhe:
- Boa noite, amigo!
- Boa noite, senhor! – respondera o porteiro
um pouco desconfiado.
- O senhor pode me dar uma informação?
- Se estiver ao meu alcance, senhor, com todo
prazer.
- Aquele senhor que entrou agora mesmo no
carro, mora neste edifício?
- Mora sim. É o Seu José. Por que o senhor
pergunta? O que quer saber?
- Porque eu dou esmola pra ele e outros
mendigos, três vezes por semana na praça de um bairro onde tenho uma
panificadora na cidade vizinha.
- Acho isso uma coisa sem cabimento. O Seu
José é um aposentado da Petrobrás e mora neste edifício já há vários anos. O
senhor deve estar confundindo ele com outra pessoa. O senhor sabe como as
pessoas se parecem com as outras, não sabe?
- Sim, eu sei. Mas será que eu estou
confundindo mesmo ele com outra pessoa?
- Com certeza! – afirmou o porteiro – Eu trabalho
aqui há dez anos. Quando comecei a trabalhar aqui, Seu José já morava neste
edifício. É uma pessoa muito distinta e caridosa. É viúvo e não tem filhos.
Portanto, acho que o senhor se enganou.
- Está bem! Muito obrigado!
O porteiro tinha razão. Seu José não era mesmo
um mendigo. Estava se fazendo passar por alguém que não era. Seu Manoel
decidira não mais insistir com o porteiro a respeito daquela história. No
retorno com o taxista de volta pra casa, ia pensando no que fazer pra
desmascarar aquele homem que representava tão bem o papel de mendigo na vida
real. No dia seguinte, o panificador explicara aos moradores do bairro o que
havia descoberto sobre Seu José: um suposto mendigo, que na verdade era um
aposentado da Petrobrás, e morava num luxuoso edifício num bairro nobre na
cidade vizinha. Os moradores não acreditaram em sua inacreditável descoberta,
achando tratar-se de outra pessoa, e não daquele homem doente e maltrapilho que
perambulava por ali pedindo esmola. Explicara também, que a prova de que Seu
José não era um mendigo estaria na ferida de sua perna, que não existia. Os
moradores que estivessem interessados em saberem a verdade, poderiam se reunir
na praça, porque, como de costume, ela daria o café da manhã pros mendigos. Depois,
se aproximaria de Seu José e pediria pra olhar a ferida, com o pretexto de que
poderia ajudá-lo a tratar melhor dela. Em seguida, a arrancaria de uma vez de
sua perna, desmascarando-o na frente dos seus colegas e dos moradores do
bairro. Todos concordaram com o plano de Seu Manoel. Algumas pessoas, na
esperança de obterem algum lucro, se aproveitavam daquela situação pra
apostarem algum dinheiro; alguns achavam que Seu Manoel poderia está inventando
aquela história; outros, que ele falava a verdade; que não tinha cabimento ele
está inventando tudo aquilo. No outro dia, Seu Manoel abrira a panificadora
mais cedo, ansioso pra resolver aquele assunto que já ultrapassara as fronteiras
do bairro. Em pouco tempo, a praça já se achava repleta de gente. Logo, um
grupo de mendigos surgira na esquina de uma das ruas que findava na praça. À
frente da panificadora, Seu Manoel os aguardava, um tanto nervoso. Os policiais, reunidos num local estratégico,
se posicionavam atentos a qualquer ação grave que pudesse ali acontecer. No
meio daqueles homens maltrapilhos e malcheirosos, Seu José se sobressaía porque
mancava, a pender o corpo pro lado esquerdo apoiado na muleta, pra não forçar a
suposta ferida que nunca sarava, já se tornando crônica em sua perna esquerda.
Assim que se assentaram, o panificador apressou-se em lhes servir o suculento
café da manhã. Fazia questão de servi-los pessoalmente, como se completasse de
corpo e alma a ação sublime de caridade. Os mendigos nutriam-se com satisfação,
a final, já estavam acostumados a serem bem alimentados àquela hora da manhã,
pelo menos três vezes por semana; e se não fosse pela surpreendente descoberta
da falsa identidade mendiga de Seu José, decerto pretendia estender a sua
caridade para todos os dias úteis da semana. Ao final da refeição, a plêiade ordinária
prosava contente. Então, Seu Manoel se aproximara de Seu José e começara a
colocar em prática o seu plano. Se abaixando perto dele, com o pretexto de
pegar alguma coisa no chão, e, numa ação rápida, arrancara-lhe bruscamente a
suposta ferida. O suposto mendigo, atemorizado com o imprevisto, caíra
desmaiado. A multidão, atônita e sem crer no que via, agitava-se descontrolada.
Seu José fora logo acudido. Pouco tempo depois, refeito do desmaio súbito,
levantou-se deslembrado do que acontecera. A multidão frenética se preparava
pra linchá-lo. Os policiais atentos, não deixaram a tragédia acontecer. Seu
Manoel pedira calma ao povo dizendo que antes de qualquer ato intempestivo de
justiça, todos ali presentes deveriam dar o direito ao suposto mendigo de
explicar-se. Um dos policiais tomara a iniciativa de perguntar-lhe incisivo:
- Seu José, todos aqui estão indignados e com
razão, pelo fato do senhor ser alguém que não é; um falso indigente! Portanto,
todos querem saber por que o senhor vem mendigando há muitos anos, já que não é
nem nunca foi de fato um mendigo?
Seu José, ainda surpreso com a inesperada
descoberta de sua falsa identidade, tentando manter o equilíbrio, começara a se
explicar:
- Realmente, meus amigos, eu não sou nem nunca
fui um mendigo. Eu moro num belo edifício num bairro elegante na cidade vizinha.
Como aposentado da Petrobrás, recebo mensalmente dez salários mínimos. Sempre
fui um homem generoso, sensível às carências do povo. Nunca aceitei em meu ser
a condição de desigualdade social de boa parte de nossa humanidade. Antes de
minha esposa falecer há quinze anos atrás, já ajudava os necessitados. Só me
casei uma vez e nunca tive filhos. Comecei a trabalhar cedo e aposentei-me aos
cinquenta anos de idade, devido à periculosidade do meu trabalho. Com o
falecimento de minha esposa me senti muito sozinho. Fiquei sem saber o que
fazer de minha vida, que pudesse preencher a minha solidão, a minha ociosidade.
Não tinha vontade de me casar de novo. Amava muito a minha esposa. Um dia, um
mendigo idoso me pedira uma esmola. Eu não dei apenas a esmola pra ele: levei-o
pra almoçar comigo num restaurante da cidade. Depois disso, voltei pra minha
casa e fiquei pensando naquela vida sofrida do mendigo. Me senti um ser inútil,
desprezível. Assim como aquele mendigo, eu também poderia estar vivendo naquela
mesma situação. No entanto, morava bem, vivia bem, porém me sentia tão infeliz...
Foi quando me ocorreu à ideia de sentir na própria carne e no espírito, o
sofrimento pelo qual passa um mendigo. Representaria o papel de um mendigo
pelas ruas pedindo esmola, não pra mim, mas pros asilos de mendigos idosos.
Então, em todos esses anos, o que tenho feito é peregrinar pelas ruas pedindo
auxílio; e a cada quinze dias eu divido o que arrecado, com duas casas de
assistência a mendigos idosos; uma, na cidade em que resido, e a outra, aqui na
cidade de vocês. Além disso, quarenta por cento do que recebo como aposentado,
eu repasso pra essas duas instituições de caridade. Portanto, meus amigos, meus
irmãos, essa é a minha história de vida. Se eu errei, não revelando em todos
esses anos a minha real identidade, não agia mal intencionado. Agia por uma
causa nobre e justa. Depois de tantos anos, já pensava em dizer quem realmente
sou. Só tenho a pedir a todos vocês que me perdoem por esse ato falho. E se
acharem que eu devo continuar com a minha contribuição de amor e caridade ao
próximo, não como mendigo, mas como Seu José, aposentado da Petrobrás, eu farei
isso enquanto vida carnal tiver, pois só assim, me sentirei um homem feliz.
Apos a confissão comovente de Seu José, todos ali presentes, com lágrimas nos
olhos, o abraçaram; e, não só perdoaram a sua ação inusitada, mas também
aceitaram o seu pedido de continuar a sua tarefa de amor e caridade cristã.
Escritor Adilson Fontoura
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