Roberto
acabara de retornar em definitivo à fazenda do pai. Concluíra o curso de
engenharia agronômica. Antes de fazer a faculdade, já administrava a fazenda
como Técnico Agrícola. Durante a sua ausência, o pai contratara um
administrador provisório, enquanto ele concluía o curso superior de agronomia.
Filho único, seu Antonio e dona Marta os criara com excesso de mimo, de dengo.
Viam, no jeito delicado, efeminado do filho, desde pequeno, uma sensibilidade
que achavam natural, fruto da forma tão amorosa, tão carinhosa com que os
criava, com tão boa vontade. Na época, após o nascimento do filho, a esposa lhe
passara as informações que o médico lhe dera, acerca da impossibilidade dela
ter mais filhos. Ele, no entanto, sem entender direito os motivos, não se
conformara no início, mas depois, temeroso de que uma nova gravidez pudesse
comprometer o bem-estar físico da esposa, pois a amava muito, inclusive com
risco de morte, resolvera aceitar a ideia de só terem um filho. Seu Antonio não
era um rico fazendeiro. Mas era um homem bem equilibrado economicamente.
Estudara até o ensino fundamental. Mas a capacidade de gerir as coisas era-lhe
inata. Em seu pensar, a esposa e o filho, eram a razão, a força principal que o
movia em dedicar-se ao trabalho, visando gerar uma boa e sólida estrutura
familiar. Depois de gerenciar por muitos anos, várias fazendas de um abastado
fazendeiro, sentira que havia chegado a hora de administrar a sua vida e a da
sua família, não mais como empregado, sim, como patrão. Foram muitos anos de
dedicação integral à tarefa difícil de gerir um conglomerado de fazendas, que,
normalmente, teriam que serem geridas por alguém teoricamente capaz; alguém,
por exemplo, que tivesse um curso superior de Administração de Empresas, com
especialização em administração rural. Mas como têm pessoas que já trazem
consigo o dom das coisas, fora dessa forma prática e inata, que seu Antonio
conseguira com êxito, gerir, com rara capacidade de liderança, disciplina e
lealdade, tão complexo empreendimento rural.
Na verdade, ele já vinha amadurecendo a ideia de ter a sua propriedade rural. Uma consequência natural para quem passara uma boa parte da vida, lidando com as atividades campesinas. Em dado momento, chamara o patrão e comunicara-lhe a decisão. Este, por sua vez, revelando surpresa, todavia, compreendera muito bem acerca dos objetivos vindouros do seu fiel e dedicado empregado. Apenas lhe pedira um pouco de tempo, o suficiente pra que o contador fizesse um levantamento de sua vida como empregado da empresa, além da procura de alguém pra substituí-lo, já sabendo de antemão que, por mais que esse alguém fosse eficiente, a ausência do grande administrador rural iria fazer muita falta a todos que com ele conviveram na lida diária, e aprenderam a amá-lo e a admirá-lo como amigo e colega de trabalho. Assim que os dados trabalhistas chegaram-lhe às mãos, o patrão chamara-lhe e dissera-lhe que a sua indenização dava pra ele comprar uma fazendinha de cinquenta hectares. Como ele teria que ter algum dinheiro pra iniciar o novo negócio, agora como patrão, lhe presenteara com uma boa gratificação, pelos excelentes serviços prestados durante todos esses anos, com rara honestidade. Os dois se abraçaram emocionados. Em poucos dias, seu Antonio localizara uma fazendinha, não de cinquenta, mas de sessenta hectares, um tanto maltratada, mas em condições de ser recuperada por alguém que sabia tão bem cuidar de uma propriedade rural; fechando a compra e realizando um dos sonhos de sua vida. A pedido do ex-patrão, ainda ficara por dois meses na abençoada função que lhe possibilitara sobreviver e constituir família, tornando-se um cidadão admirado e respeitado por todos os que o conheciam. Assim que o novo gerente fora contratado, ele se mudara de vez ao imóvel rural que comprara. A primeira vez que Roberto se ausentara do convívio com os pais, fora pra fazer o curso de Técnico Agrícola. Morando na fazenda sede, de onde gerenciava todo o conjunto de fazendas, mesmo vendo no filho quase adulto, gestos tão delicados, entretanto, seu Antonio via também nele, aptidões à vida do campo. Ele gostava de cavalgar, de tocar o gado, de tomar banho em riacho, cachoeira, de colher frutas, se interessava pelas plantações, do plantio à colheita, enfim, se revelava bem íntimo, bem à vontade, lidando com a vida campestre. E fora assim que, pai e filho, deram início à recuperação do primeiro patrimônio da família, que, certamente, seria bem administrado, já que os dois entendiam muito bem de como tocar uma propriedade rural. Com dois anos de trabalho ininterrupto, ela já estava toda recuperada. Quem a conhecera antes, tão jogada, tão maltratada, já que pertencia a herdeiros, e a visse agora, pensaria tratar-se de outra propriedade, mas na verdade era a mesma totalmente recuperada. As roças de cacau foram clonadas, já que a vassoura-de-bruxa as devastou; as pastarias foram renovadas e o capim já crescia viçoso; toda sujeira da represa, por sobre a superfície da água e pelas beiradas, fora removida, para continuar recebendo água limpa e cristalina das três aguadas que nasciam de três boqueirões protegidos por matas, visando preservação do meio ambiente; as divisas foram reavivadas; como todo seu limite era conhecido, identificando-o por marcos de cimento e cercas com arame farpado, não precisara a presença do agrimensor pra fazer a aviventação segundo as normas de engenharia agrimensória; bastava apenas, com a planta da fazenda em mãos, seguir pelo rumo cercado, aceirando-o; e a casa sede, assim como três casas para trabalhadores, também foram reformadas. Tudo isso fora feito, com a boa gratificação que o ex-patrão do seu Antonio lhe dera. Dádiva que ele, em prece, agradecia a Deus, aos seus esforços, e ao ex-patrão. Realmente, a bela fazendinha, parecia agora um paraíso. E era nesse pequeno paraíso, convivendo intimamente com a natureza bucólica e remanescente da Mata Atlântica do Sul da Bahia, que o agora fazendeiro seu Antonio, junto com a sua esposa Marta e o seu filho Roberto, pretendiam viver em paz, desfrutando da paz do ambiente tão natural que é a vida pacata no campo. Após cinco anos, já respiravam mais aliviados, pois não tinham débitos a pagar, e a propriedade já começara a produzir as primeiras arrobas de cacau, além de um pequeno rebanho de gado leiteiro, cujo leite era vendido habitualmente; mas desde o início, depois de sua recuperação, que o ex-gerente rural e o técnico agrícola investiram no plantio de frutas, verduras e hortaliças, aproveitando o potencial hídrico que o imóvel rural lhes oferecia, sendo comercializadas na região, em supermercados, nas feiras livres e na propriedade, que era de fácil acesso, visto que, uma de suas divisas, era margeada por uma estrada intermunicipal. Desse modo, foram sobrevivendo sem nenhum aperto, sem nenhuma dificuldade econômica; e puderam assim, estabelecer uma receita estável, fruto da comercialização do cacau, do leite, e dos produtos hortigranjeiros. Seu Antonio achava que o filho não precisava estudar mais. Que o curso de técnico agrícola era o suficiente pra ele desenvolver as atividades agropecuárias, que aliás, ele estava vendo na prática o êxito de tudo que fizeram até aquele momento. Mas o filho, no entanto, lhe dissera que, independente do sucesso do empreendimento, pretendia completar os seus estudos, fazendo um curso superior de engenharia agronômica. O pai, vendo que o filho estava tão decidido no objetivo de ampliar os seus estudos, não tivera outra alternativa, senão, concordar. Durante o período de faculdade, ele vinha de férias e sempre trazia novidades acerca das novas técnicas agronômicas. Seu Antonio ouvia as suas explicações com atenção e interesse, entendendo algumas coisas, outras não; depois, dizia pra ele que uma prática bem feita, superava a teoria, sem precisar de estudo; mas Roberto tentava convencê-lo de que o ideal era ter as duas coisas: teoria e prática! Explicando que, uma, auxilia a outra; uma complementa a outra. E agora, Roberto estava de volta ao convívio dos pais, que ficaram muito felizes com o retorno do filho. Seu Antonio, com lágrimas nos olhos, emocionado, abraçara o filho demoradamente. Em seguida, dona Marta também viera abraçá-lo e quase desmaia de tão emocionada; precisara o filho segurá-la pra não cair. Enfim, a família estava de novo reunida, completa e feliz. Roberto não mudara o seu jeito de ser. Continuava delicado, atencioso, sensível. Os pais os observava , tão encantados com o seu retorno, agora em definitivo. Uma vez formado, para eles, o filho precisava casar, ter filhos, formar uma família. E não precisaria morar em outro lugar. A casa sede era grande e confortável. Nela, cabiam muito bem duas famílias. Depois, se ele quisesse, poderia construir uma casa, pra ficar mais à vontade com a família constituída. Mas no pensar deles, nem precisava, pois o filho era o único herdeiro. Além disso, a sua atividade profissional estava ali mesmo, no patrimônio da família, e não fora dali. Na adolescência, Roberto iniciara um namoro com Ana, filha de um fazendeiro cuja propriedade divisava com a que os seus pais moravam junto com ele. Não era bem um namoro, só uma forte amizade, mas que poderia muito bem evoluir pra um namoro. Ana, uma moça pacata, faceira, prendada, estudara apenas um pouco, depois não quisera concluir os estudos. Também filha única, tinha um só pensamento: casar e ter filhos. E Roberto poderia ser o esposo que ela tanto imaginava em seu ideal de formar uma família bela e feliz. Os dois se curtiam muito. Tinham muitas afinidades. A relação afetiva dos dois, entretanto, não passava da amizade. Ana queria muito que ele a visse não só como amiga, mas também como uma mulher que estava ali louca pra ser amada intimamente por ele. Em certos momentos de lazer dos dois, cavalgando, colhendo frutas, tomando banho de cachoeira, na beira da represa, ou simplesmente sentados ou deitados na relva fresca da manhã ou da tarde, com frequência ela se insinuava, com palavras amáveis, com gestos carinhosos, pondo as mãos dela entre as dele, oferecendo-lhe os lábios, louca de vontade pra ser beijada por ele; que, indiferente à sua sedução, não correspondia, e dava um jeito de se afastar um pouco dela, falando outras coisas que naquele momento íntimo ela não queria ouvir; queria sim, que ele com ímpeto, a abraçasse, a beijasse, rolasse com ela na relva e até tomasse a iniciativa de fazer amor com ela, pois há muito tempo, era o que ela mais queria. Ana sofrera muito nos dois períodos de ausência de Roberto. Porém, se contentava em vê-lo nas férias, quando sempre lhe renascia a esperança dele decidir amá-la de verdade. Quando soubera de sua chegada, fora logo visitá-lo. Vendo-a, na presença dos seus pais, a abraçara e a beijara gentilmente, revelando o afeto amigo de sempre. Ana estava entusiasmada, radiante de alegria. Sabia que podia contar com os pais dele, influenciando-o pra que decidisse em desposá-la. Seis meses se passara. Apesar de Roberto e Ana estarem quase sempre juntos, já que ela o visitava com frequência, nenhuma mudança houvera que pudesse fazê-la mais feliz. Inexplicavelmente, ele a tratava com muita delicadeza, gentileza, afabilidade, mas não passava disso. Nesses seis meses, ele fizera duas viagens para visitar um colega de faculdade. Em cada uma delas, se ausentava pelo menos uma semana. Aos pais, dizia que ia atualizar-se na universidade com algumas novidades tecnológicas agronômicas. Ana, por sua vez, pedia que a levasse consigo, pois precisava sair um pouco pra se distrair, conhecer lugares, pessoas; na verdade, era mais um pretexto pra ficar junto dele; talvez, longe dos pais, ele criasse coragem pra levá-la num motel, numa pousada, ou onde ficassem hospedados, desvirginando-a de uma vez por todas. Só que ele dizia pra ela que era uma viagem de negócios, e não gostava de misturar trabalho com lazer. Quando ele retornava dessas viagens, demonstrava um contentamento excessivo, e Ana aproveitava pra insinuar-se, mas ele continuava frio, indiferente às suas insinuações; e ela ficava sem entender porque ele agia daquela forma estranha; será que ele só queria amizade com ela?, será que ele gostava de outra?, ou será que ele era gay? Não. Ela até que aceitava, mesmo sem querer, perdê-lo pra outra; agora, um homem tão bonito como aquele, deixar de gostar de mulher pra gostar de homem, seria um grande desperdício, uma anomalia da natureza humana. Após um ano, os pais de Roberto tiveram uma conversa franca com ele. Perguntaram se ele gostava de Ana de verdade. Ele lhes dissera que sim. Então fizeram-lhe outra pergunta: por que ele não decidia se casar com ela; e ele respondera que ainda estava cedo pra tomar uma decisão tão relevante em sua vida; mas que ia pensar com muito carinho nessa possibilidade de desposá-la. Mais um ano se passara. Nesse período, Roberto fizera três, das habituais viagens que fazia. Ao retornar da última viagem, dissera aos pais que estava decidido a casar-se com Ana. Seu Antonio e dona Marta ficaram muito felizes com a decisão do filho. Se dependesse deles, o filho já teria se casado, pois só a má vontade dele é que impedia tal realização. Fora logo à casa de Ana para lhe comunicar a tão adiada decisão, e aproveitara o momento oportuno para pedi-la em casamento aos seus pais. Ana, sentindo-se muito feliz, ali mesmo na frente dos seus pais, atirou-se nos braços do amado, que também abraçou-a com uma certa animação, e ambos se beijaram amorosamente pela primeira vez. Finalmente ela iria realizar o seu grande sonho: casar-se com Roberto! De fato, dois meses depois do noivado, já estavam casados. Seu Antonio fizera questão que o casamento fosse celebrado em sua fazenda. Muita gente fora convidada. Um convite especial fora enviado ao seu ex-patrão, que comparecera à cerimônia com a família. Seu Antonio não poupara gastos. Comida e bebida, tivera com fartura. Dois bois foram abatidos. A festa durara dois dias completos. Fora deveras um casamento inesquecível. Bem comentado em toda redondeza e até em cidades circunvizinhas. Afinal, as famílias dos noivos eram bem conhecidas e bem-queridas de todos os habitantes daquela região. Os pais da noiva, presentearam os noivos com uma viagem ao sul do país. Foram quinze dias de viagem em lua-de-mel. Quando retornaram, tão felizes, foram bem recebidos pelas duas famílias, que se sentiam também muito felizes com a união matrimonial do jovem casal. A vida voltara à sua normalidade rotineira, tão propícia à paz do ambiente campesino. O administrador que seu Antonio contratara, enquanto Roberto fazia a faculdade, não fora dispensado; ficara pra continuar na parte administrativa, enquanto Roberto cuidava de toda a parte técnica que envolvia o lucrativo empreendimento rural. Uma equipe permanente de cinco peões cuidavam dos serviços gerais da produtiva propriedade rural. Ana engravidara e tivera um casal de gêmeos. Dois anos se passaram. Tudo parecia transcorrer bem. Num certo dia, Roberto levara Ana e os filhos pra passarem uns dias com os pais dela. Enquanto os seus pais foram fazer uma visita a um irmão de seu Antonio, que andava meio adoentado. Dois dias antes, Roberto havia recebido um telefonema que o deixara muito preocupado. O tal colega de faculdade insistia em querer vê-lo. Dissera-lhe que, mesmo ele estando casado, sentia uma vontade irresistível de estar com ele. Que não se conformara dele tê-lo abandonado. Roberto dissera-lhe que não era mais possível continuarem com a relação amorosa, já que ele estava agora casado, e a melhor solução seria esquecê-lo pra sempre. No entanto, o tal amante, inconformado, insistia que queria vê-lo nem que fosse pela última vez. Que se Roberto não fosse vê-lo, ele era quem iria ao seu encontro. Dizendo-lhe que não podia sair, pois estava tomando conta da propriedade, devido as ausências dos pais e da esposa, muito nervoso, despedira-se bruscamente daquele que ainda amava muito, a despeito de optar por casar-se com Ana, pois os seus pais jamais se conformariam em saber que o seu único filho era um homossexual, tampouco, jamais imaginariam que o adorado filho mantinha a alguns anos, uma relação amorosa às escondidas com um ex-colega de faculdade. Três dias se passaram. No outro dia cedo Roberto teria que ir à casa dos sogros pra pegar a esposa e os filhos. Os pais dele, também já estavam prestes a retornarem da viagem. Uma angústia, uma inquietação, tomara conta dele naquela noite. Tão preocupado estava, que nem sentira fome; por isso não jantara. Recolhera-se no quarto. Deitado, sem sono, olhava pro telhado, relembrando momentos anteriores de sua vida. Optara por acabar a relação amorosa com Ricardo, não por deixar de amá-lo, mas pra satisfazer a vontade dos pais, que queriam vê-lo casado com Ana; dar-lhes os netos que eles tanto queriam; mas não gostava de mulher pra conviver, pra casar; gostava mesmo era de homem. E o homem que ele ainda tanto gostava, tanto amava, não conseguira esquecer. Por que não abrira o jogo há mais tempo, dizendo aos pais que ele era gay? Será que nunca desconfiaram do seu jeito delicado, sensível? Se desconfiavam nada diziam a respeito, temendo talvez, saberem de uma verdade que não admitiam no comportamento sexual do filho. E Ana, tantos anos de amizade com ela; via-a apenas como uma amiga; adorava ela, mas como amiga; qual homem não desejaria ter uma mulher como Ana?, tão bonita, tão faceira, tão prendada, tão sedutora! Desde a adolescência que ela sentia uma paixão louca por ele; nunca se interessara por outro homem; será que ela tinha alguma desconfiança acerca de sua preferência sexual?, se tinha, não comentava, temerosa de saber que ele era gay mesmo, por isso a rejeitava tanto; preferindo arriscar mesmo em dúvida, pra não perdê-lo, se soubesse o que ela não queria saber; foram tantos anos se insinuando, tentando seduzi-lo, tentando se entregar a ele; até que, finalmente conseguira; estava agora casada, com um casal de filhos e o marido que ela sempre quisera ter; todos se sentiam felizes ali, menos ele; será que era justo, fazer os outros felizes, sem sentir-se feliz? Mesmo não gostando de mulher, mesmo não sentindo atração sexual por mulher, teria que aparentar que gostava, ocultando a sua natureza homossexual, por preconceito dos pais, da esposa, dos parentes e amigos das duas famílias; por isso não dissera aos pais, à esposa, que era gay; por isso mantinha um caso com Ricardo, distante dos olhares preconceituosos de todos os que conhecia naquela região. Mas e agora: não podia ir ao encontro de Ricardo; bem que tinha vontade de ir; inventaria um pretexto qualquer, depois que os pais e a esposa chegassem; nem que fosse pela última vez, como lhe dissera o amante, teria que vê-lo, e lhe explicaria da impossibilidade de continuarem com o romance; pois estava casado com uma mulher que o amava muito; que com ela tivera um casal de gêmeos lindos e saudáveis; e que, mesmo não amando-a do jeito que ela queria que ele a amasse, continuaria com ela, mesmo sendo infeliz, retendo, reprimindo em si um amor por um homem que era obrigado a renunciar, pra não envergonhar, não desapontar pessoas bem próximas dele tão preconceituosas. Teria que dá um jeito de ir ao seu encontro, senão, ele é quem viria, e assim, as coisas poderiam se complicar bem mais do que já estavam complicadas. Roberto continuava ali, deitado, insone, pensando em algumas alternativas que pudessem amenizar o seu sofrimento e os sofrimentos alheios. Levava uma vida organizada, estável, pacífica, com esposa, filhos e os pais, numa união fraterna em família feliz, num ambiente bucólico paradisíaco. Apenas ele, naquele grupo familiar, estava menos feliz. Guardara o último encontro que tivera com Ricardo, tão inesquecível, nos arquivos de sua consciência, que, eventualmente, se lembrava dos momentos tão felizes que vivenciaram juntos, um amor tão sincero mas tão proibido. Poderia, se quisesse, modificar tudo aquilo a seu favor, mas magoaria muita gente, deixando lesões psíquicas difíceis de serem cicatrizadas. E era dessa forma que ele vivia, lesionado psiquicamente, por ter-se proibido amar, quem realmente ele queria amar e ser amado. Nesse caso, a alternativa mais plausível, seria deixar o tempo passar, correr, e todos seguirem as suas vidas junto com o tempo, que não espera por ninguém, levando consigo, alegrias, tristezas, mágoas, ressentimentos, decepções, todos os sentimentos bons e ruins vivenciados pela alma humana, depositando-os continuamente nos escombros ou nos recônditos da eternidade. O tempo e a alma, tão eternos quanto Deus! Pensando assim , Roberto achava que a livre escolha e a força das coisas, no porvir, decidiriam o melhor destino para cada uma daquelas almas, a vivenciarem tão fortes provações. Eram duas horas da manhã. Tão envolto em seus pensamentos, ele não sentira o tempo passar. De súbito, no silêncio habitual da noite campesina, uma buzina de carro soara estridente. Quem seria, naquela hora tão tardia da madrugada? Assustando-se e voltando à realidade presente, o jovem engenheiro pulou rápido da cama, e correra pra abrir a porta da frente da casa. Já na varanda, olhara na direção do portão de entrada do imóvel rural. Era noite de lua cheia. Por isso, a noite mais parecia um dia, de tão clara que estava. E ele pudera visualizar nitidamente, o carro e o homem, que já estava de pé junto ao portão. Tamanha fora a sua surpresa, que sentira naquele momento, um misto de alegre emoção e triste temor. Ao avistar Ricardo, correu logo ao seu encontro. Ainda bem que ele chegara numa hora que não tinha ninguém dos seus familiares por ali; os peões estavam dormindo; nem havia os olhares curiosos dos vizinhos. Ao abrir o portão, num ímpeto, os dois amantes se abraçaram e se beijaram apaixonadamente. E ficaram ali, por algum tempo, bem juntinhos se curtindo amorosamente, desfazendo a saudade que há muito tempo, um sentia tanto do outro. Depois, Roberto pedira que ele pusesse o carro pra dentro da propriedade. Assim que fechara o portão, seguiram de mãos dadas pra casa sede. Conversaram quase tudo por longas duas horas. Ficara decidido que o melhor, por enquanto, seria Roberto continuar como estava, convivendo com a esposa, os filhos ainda pequenos, e os seus pais. Entretanto, de vez em quando, poderia dar uma escapadinha, inventando um pretexto qualquer pra continuar vendo o seu amado discretamente. Desse modo, Ricardo concordara com a solução encontrada. Pelo menos, não o perderia pra sempre. Roberto levara Ricardo pro quarto de hóspedes. Ali, os dois se entregaram enamorados, numa louca paixão, num louco amor. Eram cinco horas da manhã. Tão exaustos, dormiram profundamente, mas tão felizes. Eram exatamente nove horas da manhã, quando os pais de Roberto junto com Ana e o casal de gêmeos chegavam na frente da propriedade. De volta da viagem, seu Antonio passara na fazenda dos pais de Ana pra visitá-los. Já que Ana ainda estava lá com as crianças, todos vieram juntos. O fazendeiro abrira o portão, entrara com o carro, e depois o fechara. Em seguida todos seguiram juntos pra casa sede, que ficava a cem metros da entrada da bela e bem cuidada propriedade rural. As crianças ficaram na varanda brincando, enquanto os adultos entraram na casa. Seu Antonio e dona Marta entraram no quarto do casal e logo viram que estava tudo em seu devido lugar, conforme eles deixaram antes de viajarem. Ana também entrara no quarto dela, mas não vira o esposo. Então deduzira que ele poderia estar ali por perto, verificando algo, ou orientando os peões acerca das atividades do dia. Ela já ia à cozinha pra dar início aos afazeres domésticos, quando vira a porta de um dos quartos de hóspedes encostada. Num gesto habitual, empurrou-a. E quase caíra pra trás do tamanho susto que levara. A primeira reação que tivera fora gritar pelos sogros, achando tratar-se de um ladrão. Os sogros vieram de imediato acudi-la. Quando chegaram na porta do quarto, encontraram Ana chorando convulsivamente. Daí olharam pra cama e viram uma cena tão chocante, tão decepcionante, tão desmoralizante como jamais tinham visto até aquele momento. Os três ficaram extasiados, perplexos sem creem no que viam. O casal de amantes homossexuais estavam abraçados, despidos, ainda dormindo profundamente. A primeira reação de seu Antonio fora gritar o nome do filho. Gritara fortemente várias vezes. Um grito dorido, sufocante, angustiante, por estar diante de uma verdade que ele já desconfiava há muito tempo. E quando enfim, o filho decidira se casar, ele pensara ter anulado aquela desconfiança pra sempre. Ao ouvir os gritos, o filho despertara atordoado sem saber direito o que ocorria. Quando vira os pais e a esposa ali na sua frente, tão horrorizados, tão decepcionados, caíra na real. Se cobrira com o lençol e o amante que ainda dormia. Inutilmente ele tentara explicar aos familiares, aquela situação tão embaraçosa. Mas não havia nada mais a ser explicado. Ana lhe dissera que o casamento entre eles, naquele momento, havia acabado. Não admitia em hipótese alguma estar casada com um gay. Fora criada e educada pra casar com um homem de verdade. Que ele não a procurasse mais, sendo a solução mais conveniente eles se divorciarem. Dali em diante, ela e os filhos voltariam a viver com os pais dela. Dona Marta, até então calada, só fizera indagar ao filho, porquê ele fizera aquilo, causando desgosto e decepção à sua família, que os amava tanto. E seu Antonio, apesar de amar tanto o filho, ali mesmo tomara a decisão mais difícil da vida dele: lhe dissera que não o queria mais morando com eles; conforme os seus princípios morais, não admitia um filho homossexual; e que se o filho quisesse ser aquela aberração num ser humano, que o fosse longe de sua família...
Na verdade, ele já vinha amadurecendo a ideia de ter a sua propriedade rural. Uma consequência natural para quem passara uma boa parte da vida, lidando com as atividades campesinas. Em dado momento, chamara o patrão e comunicara-lhe a decisão. Este, por sua vez, revelando surpresa, todavia, compreendera muito bem acerca dos objetivos vindouros do seu fiel e dedicado empregado. Apenas lhe pedira um pouco de tempo, o suficiente pra que o contador fizesse um levantamento de sua vida como empregado da empresa, além da procura de alguém pra substituí-lo, já sabendo de antemão que, por mais que esse alguém fosse eficiente, a ausência do grande administrador rural iria fazer muita falta a todos que com ele conviveram na lida diária, e aprenderam a amá-lo e a admirá-lo como amigo e colega de trabalho. Assim que os dados trabalhistas chegaram-lhe às mãos, o patrão chamara-lhe e dissera-lhe que a sua indenização dava pra ele comprar uma fazendinha de cinquenta hectares. Como ele teria que ter algum dinheiro pra iniciar o novo negócio, agora como patrão, lhe presenteara com uma boa gratificação, pelos excelentes serviços prestados durante todos esses anos, com rara honestidade. Os dois se abraçaram emocionados. Em poucos dias, seu Antonio localizara uma fazendinha, não de cinquenta, mas de sessenta hectares, um tanto maltratada, mas em condições de ser recuperada por alguém que sabia tão bem cuidar de uma propriedade rural; fechando a compra e realizando um dos sonhos de sua vida. A pedido do ex-patrão, ainda ficara por dois meses na abençoada função que lhe possibilitara sobreviver e constituir família, tornando-se um cidadão admirado e respeitado por todos os que o conheciam. Assim que o novo gerente fora contratado, ele se mudara de vez ao imóvel rural que comprara. A primeira vez que Roberto se ausentara do convívio com os pais, fora pra fazer o curso de Técnico Agrícola. Morando na fazenda sede, de onde gerenciava todo o conjunto de fazendas, mesmo vendo no filho quase adulto, gestos tão delicados, entretanto, seu Antonio via também nele, aptidões à vida do campo. Ele gostava de cavalgar, de tocar o gado, de tomar banho em riacho, cachoeira, de colher frutas, se interessava pelas plantações, do plantio à colheita, enfim, se revelava bem íntimo, bem à vontade, lidando com a vida campestre. E fora assim que, pai e filho, deram início à recuperação do primeiro patrimônio da família, que, certamente, seria bem administrado, já que os dois entendiam muito bem de como tocar uma propriedade rural. Com dois anos de trabalho ininterrupto, ela já estava toda recuperada. Quem a conhecera antes, tão jogada, tão maltratada, já que pertencia a herdeiros, e a visse agora, pensaria tratar-se de outra propriedade, mas na verdade era a mesma totalmente recuperada. As roças de cacau foram clonadas, já que a vassoura-de-bruxa as devastou; as pastarias foram renovadas e o capim já crescia viçoso; toda sujeira da represa, por sobre a superfície da água e pelas beiradas, fora removida, para continuar recebendo água limpa e cristalina das três aguadas que nasciam de três boqueirões protegidos por matas, visando preservação do meio ambiente; as divisas foram reavivadas; como todo seu limite era conhecido, identificando-o por marcos de cimento e cercas com arame farpado, não precisara a presença do agrimensor pra fazer a aviventação segundo as normas de engenharia agrimensória; bastava apenas, com a planta da fazenda em mãos, seguir pelo rumo cercado, aceirando-o; e a casa sede, assim como três casas para trabalhadores, também foram reformadas. Tudo isso fora feito, com a boa gratificação que o ex-patrão do seu Antonio lhe dera. Dádiva que ele, em prece, agradecia a Deus, aos seus esforços, e ao ex-patrão. Realmente, a bela fazendinha, parecia agora um paraíso. E era nesse pequeno paraíso, convivendo intimamente com a natureza bucólica e remanescente da Mata Atlântica do Sul da Bahia, que o agora fazendeiro seu Antonio, junto com a sua esposa Marta e o seu filho Roberto, pretendiam viver em paz, desfrutando da paz do ambiente tão natural que é a vida pacata no campo. Após cinco anos, já respiravam mais aliviados, pois não tinham débitos a pagar, e a propriedade já começara a produzir as primeiras arrobas de cacau, além de um pequeno rebanho de gado leiteiro, cujo leite era vendido habitualmente; mas desde o início, depois de sua recuperação, que o ex-gerente rural e o técnico agrícola investiram no plantio de frutas, verduras e hortaliças, aproveitando o potencial hídrico que o imóvel rural lhes oferecia, sendo comercializadas na região, em supermercados, nas feiras livres e na propriedade, que era de fácil acesso, visto que, uma de suas divisas, era margeada por uma estrada intermunicipal. Desse modo, foram sobrevivendo sem nenhum aperto, sem nenhuma dificuldade econômica; e puderam assim, estabelecer uma receita estável, fruto da comercialização do cacau, do leite, e dos produtos hortigranjeiros. Seu Antonio achava que o filho não precisava estudar mais. Que o curso de técnico agrícola era o suficiente pra ele desenvolver as atividades agropecuárias, que aliás, ele estava vendo na prática o êxito de tudo que fizeram até aquele momento. Mas o filho, no entanto, lhe dissera que, independente do sucesso do empreendimento, pretendia completar os seus estudos, fazendo um curso superior de engenharia agronômica. O pai, vendo que o filho estava tão decidido no objetivo de ampliar os seus estudos, não tivera outra alternativa, senão, concordar. Durante o período de faculdade, ele vinha de férias e sempre trazia novidades acerca das novas técnicas agronômicas. Seu Antonio ouvia as suas explicações com atenção e interesse, entendendo algumas coisas, outras não; depois, dizia pra ele que uma prática bem feita, superava a teoria, sem precisar de estudo; mas Roberto tentava convencê-lo de que o ideal era ter as duas coisas: teoria e prática! Explicando que, uma, auxilia a outra; uma complementa a outra. E agora, Roberto estava de volta ao convívio dos pais, que ficaram muito felizes com o retorno do filho. Seu Antonio, com lágrimas nos olhos, emocionado, abraçara o filho demoradamente. Em seguida, dona Marta também viera abraçá-lo e quase desmaia de tão emocionada; precisara o filho segurá-la pra não cair. Enfim, a família estava de novo reunida, completa e feliz. Roberto não mudara o seu jeito de ser. Continuava delicado, atencioso, sensível. Os pais os observava , tão encantados com o seu retorno, agora em definitivo. Uma vez formado, para eles, o filho precisava casar, ter filhos, formar uma família. E não precisaria morar em outro lugar. A casa sede era grande e confortável. Nela, cabiam muito bem duas famílias. Depois, se ele quisesse, poderia construir uma casa, pra ficar mais à vontade com a família constituída. Mas no pensar deles, nem precisava, pois o filho era o único herdeiro. Além disso, a sua atividade profissional estava ali mesmo, no patrimônio da família, e não fora dali. Na adolescência, Roberto iniciara um namoro com Ana, filha de um fazendeiro cuja propriedade divisava com a que os seus pais moravam junto com ele. Não era bem um namoro, só uma forte amizade, mas que poderia muito bem evoluir pra um namoro. Ana, uma moça pacata, faceira, prendada, estudara apenas um pouco, depois não quisera concluir os estudos. Também filha única, tinha um só pensamento: casar e ter filhos. E Roberto poderia ser o esposo que ela tanto imaginava em seu ideal de formar uma família bela e feliz. Os dois se curtiam muito. Tinham muitas afinidades. A relação afetiva dos dois, entretanto, não passava da amizade. Ana queria muito que ele a visse não só como amiga, mas também como uma mulher que estava ali louca pra ser amada intimamente por ele. Em certos momentos de lazer dos dois, cavalgando, colhendo frutas, tomando banho de cachoeira, na beira da represa, ou simplesmente sentados ou deitados na relva fresca da manhã ou da tarde, com frequência ela se insinuava, com palavras amáveis, com gestos carinhosos, pondo as mãos dela entre as dele, oferecendo-lhe os lábios, louca de vontade pra ser beijada por ele; que, indiferente à sua sedução, não correspondia, e dava um jeito de se afastar um pouco dela, falando outras coisas que naquele momento íntimo ela não queria ouvir; queria sim, que ele com ímpeto, a abraçasse, a beijasse, rolasse com ela na relva e até tomasse a iniciativa de fazer amor com ela, pois há muito tempo, era o que ela mais queria. Ana sofrera muito nos dois períodos de ausência de Roberto. Porém, se contentava em vê-lo nas férias, quando sempre lhe renascia a esperança dele decidir amá-la de verdade. Quando soubera de sua chegada, fora logo visitá-lo. Vendo-a, na presença dos seus pais, a abraçara e a beijara gentilmente, revelando o afeto amigo de sempre. Ana estava entusiasmada, radiante de alegria. Sabia que podia contar com os pais dele, influenciando-o pra que decidisse em desposá-la. Seis meses se passara. Apesar de Roberto e Ana estarem quase sempre juntos, já que ela o visitava com frequência, nenhuma mudança houvera que pudesse fazê-la mais feliz. Inexplicavelmente, ele a tratava com muita delicadeza, gentileza, afabilidade, mas não passava disso. Nesses seis meses, ele fizera duas viagens para visitar um colega de faculdade. Em cada uma delas, se ausentava pelo menos uma semana. Aos pais, dizia que ia atualizar-se na universidade com algumas novidades tecnológicas agronômicas. Ana, por sua vez, pedia que a levasse consigo, pois precisava sair um pouco pra se distrair, conhecer lugares, pessoas; na verdade, era mais um pretexto pra ficar junto dele; talvez, longe dos pais, ele criasse coragem pra levá-la num motel, numa pousada, ou onde ficassem hospedados, desvirginando-a de uma vez por todas. Só que ele dizia pra ela que era uma viagem de negócios, e não gostava de misturar trabalho com lazer. Quando ele retornava dessas viagens, demonstrava um contentamento excessivo, e Ana aproveitava pra insinuar-se, mas ele continuava frio, indiferente às suas insinuações; e ela ficava sem entender porque ele agia daquela forma estranha; será que ele só queria amizade com ela?, será que ele gostava de outra?, ou será que ele era gay? Não. Ela até que aceitava, mesmo sem querer, perdê-lo pra outra; agora, um homem tão bonito como aquele, deixar de gostar de mulher pra gostar de homem, seria um grande desperdício, uma anomalia da natureza humana. Após um ano, os pais de Roberto tiveram uma conversa franca com ele. Perguntaram se ele gostava de Ana de verdade. Ele lhes dissera que sim. Então fizeram-lhe outra pergunta: por que ele não decidia se casar com ela; e ele respondera que ainda estava cedo pra tomar uma decisão tão relevante em sua vida; mas que ia pensar com muito carinho nessa possibilidade de desposá-la. Mais um ano se passara. Nesse período, Roberto fizera três, das habituais viagens que fazia. Ao retornar da última viagem, dissera aos pais que estava decidido a casar-se com Ana. Seu Antonio e dona Marta ficaram muito felizes com a decisão do filho. Se dependesse deles, o filho já teria se casado, pois só a má vontade dele é que impedia tal realização. Fora logo à casa de Ana para lhe comunicar a tão adiada decisão, e aproveitara o momento oportuno para pedi-la em casamento aos seus pais. Ana, sentindo-se muito feliz, ali mesmo na frente dos seus pais, atirou-se nos braços do amado, que também abraçou-a com uma certa animação, e ambos se beijaram amorosamente pela primeira vez. Finalmente ela iria realizar o seu grande sonho: casar-se com Roberto! De fato, dois meses depois do noivado, já estavam casados. Seu Antonio fizera questão que o casamento fosse celebrado em sua fazenda. Muita gente fora convidada. Um convite especial fora enviado ao seu ex-patrão, que comparecera à cerimônia com a família. Seu Antonio não poupara gastos. Comida e bebida, tivera com fartura. Dois bois foram abatidos. A festa durara dois dias completos. Fora deveras um casamento inesquecível. Bem comentado em toda redondeza e até em cidades circunvizinhas. Afinal, as famílias dos noivos eram bem conhecidas e bem-queridas de todos os habitantes daquela região. Os pais da noiva, presentearam os noivos com uma viagem ao sul do país. Foram quinze dias de viagem em lua-de-mel. Quando retornaram, tão felizes, foram bem recebidos pelas duas famílias, que se sentiam também muito felizes com a união matrimonial do jovem casal. A vida voltara à sua normalidade rotineira, tão propícia à paz do ambiente campesino. O administrador que seu Antonio contratara, enquanto Roberto fazia a faculdade, não fora dispensado; ficara pra continuar na parte administrativa, enquanto Roberto cuidava de toda a parte técnica que envolvia o lucrativo empreendimento rural. Uma equipe permanente de cinco peões cuidavam dos serviços gerais da produtiva propriedade rural. Ana engravidara e tivera um casal de gêmeos. Dois anos se passaram. Tudo parecia transcorrer bem. Num certo dia, Roberto levara Ana e os filhos pra passarem uns dias com os pais dela. Enquanto os seus pais foram fazer uma visita a um irmão de seu Antonio, que andava meio adoentado. Dois dias antes, Roberto havia recebido um telefonema que o deixara muito preocupado. O tal colega de faculdade insistia em querer vê-lo. Dissera-lhe que, mesmo ele estando casado, sentia uma vontade irresistível de estar com ele. Que não se conformara dele tê-lo abandonado. Roberto dissera-lhe que não era mais possível continuarem com a relação amorosa, já que ele estava agora casado, e a melhor solução seria esquecê-lo pra sempre. No entanto, o tal amante, inconformado, insistia que queria vê-lo nem que fosse pela última vez. Que se Roberto não fosse vê-lo, ele era quem iria ao seu encontro. Dizendo-lhe que não podia sair, pois estava tomando conta da propriedade, devido as ausências dos pais e da esposa, muito nervoso, despedira-se bruscamente daquele que ainda amava muito, a despeito de optar por casar-se com Ana, pois os seus pais jamais se conformariam em saber que o seu único filho era um homossexual, tampouco, jamais imaginariam que o adorado filho mantinha a alguns anos, uma relação amorosa às escondidas com um ex-colega de faculdade. Três dias se passaram. No outro dia cedo Roberto teria que ir à casa dos sogros pra pegar a esposa e os filhos. Os pais dele, também já estavam prestes a retornarem da viagem. Uma angústia, uma inquietação, tomara conta dele naquela noite. Tão preocupado estava, que nem sentira fome; por isso não jantara. Recolhera-se no quarto. Deitado, sem sono, olhava pro telhado, relembrando momentos anteriores de sua vida. Optara por acabar a relação amorosa com Ricardo, não por deixar de amá-lo, mas pra satisfazer a vontade dos pais, que queriam vê-lo casado com Ana; dar-lhes os netos que eles tanto queriam; mas não gostava de mulher pra conviver, pra casar; gostava mesmo era de homem. E o homem que ele ainda tanto gostava, tanto amava, não conseguira esquecer. Por que não abrira o jogo há mais tempo, dizendo aos pais que ele era gay? Será que nunca desconfiaram do seu jeito delicado, sensível? Se desconfiavam nada diziam a respeito, temendo talvez, saberem de uma verdade que não admitiam no comportamento sexual do filho. E Ana, tantos anos de amizade com ela; via-a apenas como uma amiga; adorava ela, mas como amiga; qual homem não desejaria ter uma mulher como Ana?, tão bonita, tão faceira, tão prendada, tão sedutora! Desde a adolescência que ela sentia uma paixão louca por ele; nunca se interessara por outro homem; será que ela tinha alguma desconfiança acerca de sua preferência sexual?, se tinha, não comentava, temerosa de saber que ele era gay mesmo, por isso a rejeitava tanto; preferindo arriscar mesmo em dúvida, pra não perdê-lo, se soubesse o que ela não queria saber; foram tantos anos se insinuando, tentando seduzi-lo, tentando se entregar a ele; até que, finalmente conseguira; estava agora casada, com um casal de filhos e o marido que ela sempre quisera ter; todos se sentiam felizes ali, menos ele; será que era justo, fazer os outros felizes, sem sentir-se feliz? Mesmo não gostando de mulher, mesmo não sentindo atração sexual por mulher, teria que aparentar que gostava, ocultando a sua natureza homossexual, por preconceito dos pais, da esposa, dos parentes e amigos das duas famílias; por isso não dissera aos pais, à esposa, que era gay; por isso mantinha um caso com Ricardo, distante dos olhares preconceituosos de todos os que conhecia naquela região. Mas e agora: não podia ir ao encontro de Ricardo; bem que tinha vontade de ir; inventaria um pretexto qualquer, depois que os pais e a esposa chegassem; nem que fosse pela última vez, como lhe dissera o amante, teria que vê-lo, e lhe explicaria da impossibilidade de continuarem com o romance; pois estava casado com uma mulher que o amava muito; que com ela tivera um casal de gêmeos lindos e saudáveis; e que, mesmo não amando-a do jeito que ela queria que ele a amasse, continuaria com ela, mesmo sendo infeliz, retendo, reprimindo em si um amor por um homem que era obrigado a renunciar, pra não envergonhar, não desapontar pessoas bem próximas dele tão preconceituosas. Teria que dá um jeito de ir ao seu encontro, senão, ele é quem viria, e assim, as coisas poderiam se complicar bem mais do que já estavam complicadas. Roberto continuava ali, deitado, insone, pensando em algumas alternativas que pudessem amenizar o seu sofrimento e os sofrimentos alheios. Levava uma vida organizada, estável, pacífica, com esposa, filhos e os pais, numa união fraterna em família feliz, num ambiente bucólico paradisíaco. Apenas ele, naquele grupo familiar, estava menos feliz. Guardara o último encontro que tivera com Ricardo, tão inesquecível, nos arquivos de sua consciência, que, eventualmente, se lembrava dos momentos tão felizes que vivenciaram juntos, um amor tão sincero mas tão proibido. Poderia, se quisesse, modificar tudo aquilo a seu favor, mas magoaria muita gente, deixando lesões psíquicas difíceis de serem cicatrizadas. E era dessa forma que ele vivia, lesionado psiquicamente, por ter-se proibido amar, quem realmente ele queria amar e ser amado. Nesse caso, a alternativa mais plausível, seria deixar o tempo passar, correr, e todos seguirem as suas vidas junto com o tempo, que não espera por ninguém, levando consigo, alegrias, tristezas, mágoas, ressentimentos, decepções, todos os sentimentos bons e ruins vivenciados pela alma humana, depositando-os continuamente nos escombros ou nos recônditos da eternidade. O tempo e a alma, tão eternos quanto Deus! Pensando assim , Roberto achava que a livre escolha e a força das coisas, no porvir, decidiriam o melhor destino para cada uma daquelas almas, a vivenciarem tão fortes provações. Eram duas horas da manhã. Tão envolto em seus pensamentos, ele não sentira o tempo passar. De súbito, no silêncio habitual da noite campesina, uma buzina de carro soara estridente. Quem seria, naquela hora tão tardia da madrugada? Assustando-se e voltando à realidade presente, o jovem engenheiro pulou rápido da cama, e correra pra abrir a porta da frente da casa. Já na varanda, olhara na direção do portão de entrada do imóvel rural. Era noite de lua cheia. Por isso, a noite mais parecia um dia, de tão clara que estava. E ele pudera visualizar nitidamente, o carro e o homem, que já estava de pé junto ao portão. Tamanha fora a sua surpresa, que sentira naquele momento, um misto de alegre emoção e triste temor. Ao avistar Ricardo, correu logo ao seu encontro. Ainda bem que ele chegara numa hora que não tinha ninguém dos seus familiares por ali; os peões estavam dormindo; nem havia os olhares curiosos dos vizinhos. Ao abrir o portão, num ímpeto, os dois amantes se abraçaram e se beijaram apaixonadamente. E ficaram ali, por algum tempo, bem juntinhos se curtindo amorosamente, desfazendo a saudade que há muito tempo, um sentia tanto do outro. Depois, Roberto pedira que ele pusesse o carro pra dentro da propriedade. Assim que fechara o portão, seguiram de mãos dadas pra casa sede. Conversaram quase tudo por longas duas horas. Ficara decidido que o melhor, por enquanto, seria Roberto continuar como estava, convivendo com a esposa, os filhos ainda pequenos, e os seus pais. Entretanto, de vez em quando, poderia dar uma escapadinha, inventando um pretexto qualquer pra continuar vendo o seu amado discretamente. Desse modo, Ricardo concordara com a solução encontrada. Pelo menos, não o perderia pra sempre. Roberto levara Ricardo pro quarto de hóspedes. Ali, os dois se entregaram enamorados, numa louca paixão, num louco amor. Eram cinco horas da manhã. Tão exaustos, dormiram profundamente, mas tão felizes. Eram exatamente nove horas da manhã, quando os pais de Roberto junto com Ana e o casal de gêmeos chegavam na frente da propriedade. De volta da viagem, seu Antonio passara na fazenda dos pais de Ana pra visitá-los. Já que Ana ainda estava lá com as crianças, todos vieram juntos. O fazendeiro abrira o portão, entrara com o carro, e depois o fechara. Em seguida todos seguiram juntos pra casa sede, que ficava a cem metros da entrada da bela e bem cuidada propriedade rural. As crianças ficaram na varanda brincando, enquanto os adultos entraram na casa. Seu Antonio e dona Marta entraram no quarto do casal e logo viram que estava tudo em seu devido lugar, conforme eles deixaram antes de viajarem. Ana também entrara no quarto dela, mas não vira o esposo. Então deduzira que ele poderia estar ali por perto, verificando algo, ou orientando os peões acerca das atividades do dia. Ela já ia à cozinha pra dar início aos afazeres domésticos, quando vira a porta de um dos quartos de hóspedes encostada. Num gesto habitual, empurrou-a. E quase caíra pra trás do tamanho susto que levara. A primeira reação que tivera fora gritar pelos sogros, achando tratar-se de um ladrão. Os sogros vieram de imediato acudi-la. Quando chegaram na porta do quarto, encontraram Ana chorando convulsivamente. Daí olharam pra cama e viram uma cena tão chocante, tão decepcionante, tão desmoralizante como jamais tinham visto até aquele momento. Os três ficaram extasiados, perplexos sem creem no que viam. O casal de amantes homossexuais estavam abraçados, despidos, ainda dormindo profundamente. A primeira reação de seu Antonio fora gritar o nome do filho. Gritara fortemente várias vezes. Um grito dorido, sufocante, angustiante, por estar diante de uma verdade que ele já desconfiava há muito tempo. E quando enfim, o filho decidira se casar, ele pensara ter anulado aquela desconfiança pra sempre. Ao ouvir os gritos, o filho despertara atordoado sem saber direito o que ocorria. Quando vira os pais e a esposa ali na sua frente, tão horrorizados, tão decepcionados, caíra na real. Se cobrira com o lençol e o amante que ainda dormia. Inutilmente ele tentara explicar aos familiares, aquela situação tão embaraçosa. Mas não havia nada mais a ser explicado. Ana lhe dissera que o casamento entre eles, naquele momento, havia acabado. Não admitia em hipótese alguma estar casada com um gay. Fora criada e educada pra casar com um homem de verdade. Que ele não a procurasse mais, sendo a solução mais conveniente eles se divorciarem. Dali em diante, ela e os filhos voltariam a viver com os pais dela. Dona Marta, até então calada, só fizera indagar ao filho, porquê ele fizera aquilo, causando desgosto e decepção à sua família, que os amava tanto. E seu Antonio, apesar de amar tanto o filho, ali mesmo tomara a decisão mais difícil da vida dele: lhe dissera que não o queria mais morando com eles; conforme os seus princípios morais, não admitia um filho homossexual; e que se o filho quisesse ser aquela aberração num ser humano, que o fosse longe de sua família...
Escritor Adilson Fontoura
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