Nada como uma manchete
sensacionalista para despertar interesse. Que o diga a turma da revista
Superinteressante, que estampou na capa da sua última edição a conclusiva
afirmação “Fé faz bem”. Uma pena. Temos poucas revistas de divulgação
científica. Seus editores deveriam ser mais cuidadosos e não transformar
evidências fracas em verdades definitivas.
Mas vamos direto ao
assunto. Por que estou colocando em dúvida aqui a veracidade da manchete da
revista? Ao final, ter fé contribui para nossa saúde mental e com isso, claro,
nossa saúde física? O que a ciência pode dizer sobre isso?
Temos de fato alguns
estudos que apontam que a prática religiosa contribui para o bem-estar
psicológico. Este bem-estar parece melhorar inclusive alguns aspectos do nosso
sistema imunológico. Mas ao analisar mais criteriosamente esses estudos
observamos que quase todos foram realizados em Norte-América utilizando indivíduos caucasianos de origem
católica ou protestante. Assim, é muito difícil generalizar esses resultados
aos diferentes contextos culturais. E se algo aprendemos nestes anos é que a
cultura em que estamos inseridos é capaz de modificar nossas redes neurais, e
com isso nosso comportamento, sentimentos, reações e emoções.
Outro aspecto importante
é que os resultados positivos da religiosidade –que são estatisticamente apenas
marginalmente significantes- parecem estar mais relacionadas com a realização
de atividades em grupo que com a fé propriamente dita. Somos animais gregários
e conviver em grupos nos faz muito bem. Os efeitos positivos da religiosidade
são menos evidentes quando os indivíduos optam por uma prática espiritual
individual e prescindem do contato com outras pessoas, contato que se obtêm,
por exemplo, nas religiões institucionalizadas.
Estes aspectos não são
sequer citados na reportagem da Superinteressante, embora já tenham sido
levantados pela comunidade científica.
Estranhamente também, a
revista não cita o estudo mais recente e amplo feito sobre o assunto. Nele foi
analisada a relação entre as crenças religiosas ou espirituais e o aparecimento
de episódios de depressão. Como esta é porta de entrada para várias outras
disfunções psicológicas, se a prática religiosa ou a espiritualidade “fizessem
bem” (como afirma a manchete da revista) o número de indivíduos com depressão
seria menor entre pessoas de fé.
A diferença dos estudos
anteriores, este incluiu um número relativamente grande de indivíduos (8318),
de várias nacionalidades (Reino Unido, Espanha, Chile, Eslovênia, Estônia,
Holanda e Portugal) em diversos contextos culturais e socioeconômicos.
Os autores dividiram os
participantes em três grupos: 1) os que praticavam uma religiosidade
institucionalizada (frequentando igrejas, templos, etc.,); 2) os que não
seguiam nenhuma religião mas tinham crenças e experiências espirituais (por
exemplo, eles acreditavam na existência de um poder ou força além deles mesmos,
o qual poderia influenciar suas vidas); e finalmente o grupo 3, dos seculares,
que não manifestavam crença em qualquer religião nem força sobrenatural capaz
de influenciar suas vidas. Foi solicitado também aos membros dos grupos 1 e 2
que, de 1 a 6, dessem uma nota à intensidade da sua fé.
Os resultados como era de
se esperar variaram bastante entre países, mas em média a maior frequência de
episódios depressivos foi observada nos membros do grupo 2 (pessoas com fé mas
sem religião específica). Neste grupo 10,5% apresentaram pelo menos um episódio
de depressão ao ano, contra 10,3% do grupo 1 (pessoas religiosas que
frequentavam igrejas), e os menos deprimidos foram os seculares, com apenas
7,0% tendo episódios depressivos. No Reino Unido estas diferenças foram mais
significativas, com os membros do grupo 2 tendo uma frequência de crises
depressivas três vezes maior que o grupo secular. A intensidade da fé também
afetou, sendo que aqueles que tinham uma fé mais intensa apresentaram um risco
de depressão que era o dobro em relação àqueles que tinham fé menos intensa.
Os autores concluem que
estes resultados não sustentam a ideia que uma vida religiosa ou espiritual
seja capaz de melhorar o bem-estar psicológico. Ainda, observaram que a crença
religiosa não exercia nenhum efeito moderador no impacto que eventuais
acontecimentos dramáticos em nossa vida poderiam ter em relação ao aparecimento
ou não de episódios depressivos.
Será que estes resultados
justificam a manchete que escolhi para este artigo? Não! Propositalmente forcei
a barra. As diferenças estatísticas são muito pequenas (salvo no Reino Unido) e
seria impossível que um único estudo elucidasse um aspecto tão complexo. A
conclusão dos autores é um exemplo de cautela científica, os resultados apenas
não validam a hipótese que religiosidade melhore nosso bem-estar psicológico,
mas eles não concluem: fé causa depressão. É assim que se faz.
Mas por outro lado,
quando vejo milhões de pessoas em nosso país sendo ludibriadas, acreditando em
milagres comprados e deixando boa parte de seu pouco dinheiro para financiar o
atraso que representa um estado regido por crenças religiosas, devo reconhecer
que sim, fé causa depressão!
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