A criança passeia com a mãe de mãos dadas, tão
distraídas
e felizes, unidas pelo sublime amor maternal e
filial.
A mãe, nem tão alheia naqueles momentos,
à realidade infernal do mundo.
Mas a filha, sim, movida por sua ingenuidade
momentânea no corpinho mancebo.
Ao olhar pro outro lado da rua, a criança vê um
mendigo
deitado no passeio, sob a marquise do edifício.
E a mãe se surpreende com a fala dela:
- Mãe! Mãe! Olha pra aquele homem ali, mãe!
- Qual, minha filha?
- Aquele, mãe, que tá ali deitado no passeio,
dormindo.
- Eu sei, mãe, que ele tá dormindo, quem disse
isso
pra senhora fui eu... Mas mãe, ele deveria tá
dormindo
numa cama, mãe... Por que não tá?
- Não sei, minha filha, talvez ele já tivesse
tido
casa, dormida, comida... Mas hoje não tem, e
vive assim,
jogado no mundo, maltrapilho, desprezado pela
vida,
pelas pessoas... A vida é assim, minha filha,
uns vivem no conforto, no bem-estar,
outros vivem na miséria, no mal-estar, mas
todos vivem,
e todos são filhos de Deus, só que uns vivem a
vida
passando por maus momentos, e outros por bons
momentos...
E a criança insistia, inconformada com a
situação
de penúria do mendigo:
- Mas mãe, todos não deveriam ter casa,
dormida, comida?
- Sim, minha filha, todos deveriam ter, mas
ainda vivemos
num mundo muito desigual... Pois o orgulho, o
egoísmo
nas pessoas, ainda predominam sobre a humildade
e caridade.
As pessoas, em sua maioria padecem por
inferioridade
moral; quando deveriam viver bem, por
superioridade moral.
Todavia, minha filha, haverá um tempo em que
todos viverão
bem; a igualdade social vai prevalecer; a
felicidade entre
as pessoas será uma constante; o amor que Deus
já nos Doou,
será uma força luminosa viva e real, nas ações
fraternas
habituais entre todos nós.
- Então quer dizer, mãe, que aquele homem, e
outros como
ele, ainda poderão viver bem, no conforto,
poderão ter casa,
tomar banho todo dia, andar limpo, comer como a
gente come,
e dormir numa cama como a gente dorme?!
- Sim, minha filha!... Muitas vezes a alma
humana passa
por provações em suas diversas etapas
experimentais,
fruto do uso do mau-senso do seu
livre-arbítrio; fruto
dos próprios atos ruins a si e ao próximo; mas
a alma
humana, que jamais morre, não tem uma única
vida
pra viver em um só corpo humano; em cada etapa
de sua vivência nos diversos corpos humanos que
são
formados pra ela habitar, aprende um pouco
mais, aprende
a se livrar dos débitos cármicos que geraram
acúmulo
de impurezas em sua essência; e assim, lenta,
gradual
e continuamente, ela progride em
intelectualidade,
moralidade e espiritualidade, até o alcance,
por mérito
próprio, de sua superioridade moral, de sua
pureza espiritual.
A criança, ouvindo atenta as explicações da
mãe, sem entender
bem o que lhe queria dizer, mas sabia que era
pro seu bem,
pro bem dela, daquele homem e de toda
humanidade.
De súbito, uma água escorre da parte térrea do
edifício,
encharcando quase todo corpo andrajoso do
mendigo,
que ainda dormia. Acordando, um tanto
deslembrado,
ele senta-se, e quando abre os olhos, se depara
com a criança
olhando pra ele fixamente. Então ele sorri
feliz pra ela,
embora estivesse parcialmente desdentado. Ela,
por sua vez,
também sorri pra ele, e fala pra mãe:
- Olha, mãe, ele tá sem dente na frente, igual
a mim...
A mãe, meio que sem jeito, e sem saber o que
dizer, apenas sorri...
E continua: - Mãe, ele tá todo molhado, a sua
roupa tá suja...
- É mesmo, filha, mas daqui a pouco, quando o
sol esquentar,
a roupa seca, ou então ele a tira e veste
outra...
- Mas aonde ele vai tirar a roupa suja e
molhada pra vestir outra?
- Não sei, minha filha, em qualquer lugar mais
adequado que ele
possa fazer isso... A criança ficou pensativa;
depois tornou a falar:
- Mãe, eu posso te fazer um pedido: - Pode sim,
minha filha.
- Eu gosto desse homem, mãe! Ele tá do jeito
que tá, mas eu gosto
dele. E a gente vai ajudar ele, mãe.
- Mas minha filha, o que você tá querendo dizer
com isso?
- Que eu quero ajudar ele, mãe. Não ouviu o que
eu lhe disse?!
- Sim, eu ouvi. Mas veja bem: ele tá no mundo
dele, e nós estamos
em nosso mundo; ele tá daquele jeito, porém
sabe se cuidar, mesmo
sem as condições adequadas pra sobreviver, mas
ele sabe, filha...
-Mãe, o mundo é o mesmo, tanto pra ele, quanto
pra nós... quando
a gente quer ajudar, ajuda, mãe, é o coração da
gente que pede isso...
- Está bem, minha filha... Você ainda é tão pequena...
Estou sempre
me surpreendendo com você... Tenho a impressão
que estou diante
de uma alma superior... Quanta bondade
espontânea de sua alma...
Mas diz aí, o que você quer que a sua mamãe
faça pra ajudar o pobre
mendigo? – Eu quero que você o leve em casa e
fale pra Maria (a empregada
doméstica) cuidar dele; ele tem que tomar
banho, trocar de roupa, comer bastante
pra ficar forte, depois dormir... Amanhã,
quando ele acordar, vai se sentir melhor,
depois a gente deixa ele ir pra onde quiser...
Eu sinto que a gente precisa ajudar
ele, pelo menos por hoje... A mãe olhou pra
filha, meio confusa, meio indecisa
diante daquela atitude generosa, porém tão
inesperada dela, e lhe disse:
- Filha, o seu pai tá viajando e só chega daqui
a três dias; eu não sei se ele gostaria
que fizéssemos isso, sem a presença ou
aprovação dele; o homem, dá pra gente
vê que é inofensivo; mesmo do jeito que tá, não
nos faria mal; só não acho oportuno,
ajudá-lo sem o consentimento do seu pai... –
Mas mãe, se ele tivesse morrendo,
e dependesse da senhora lhe dá o socorro, teria
que aguardar o pai chegar pra socorrê-lo?
A mãe, mais uma vez olhou pra filha e se
surpreendeu de novo! Realmente, ela tinha razão!
- Está bem, você me convenceu! No fundo da casa
tem um quartinho, que funciona como
um depósito, como você sabe; mas tem uma cama
de solteiro e um sanitário; é lá que ele
vai ficar, só por uma noite, viu? Quando o seu
pai chegar, eu conto a ação caridosa que
fizemos, por iniciativa sua; ele vai se
surpreender, vai achar um tanto estranho, mas depois
concordará, afinal, é um homem muito bom,
trabalhador, lutou muito pra ter o que tem,
e sempre ajuda a quem precisa.
Depois de conversar com o mendigo, o que
pretendia fazer, que de início, resistiu em não aceitar,
mas só pela afinidade que tinha com a criança,
resolveu seguir junto com mãe e filha
pra receber o auxílio tão necessário naquele
momento, que decerto, vinha de Deus, pelas mãos
daquelas almas tão caridosas...
À noite, em sonhos, com a alma desdobrada, o
mendigo estava sentado num lindo jardim
contemplando as flores; o seu perispírito
estava limpo; e uma aura luminosa o envolvia tão
esplêndida... Foi quando, de repente, um foco
intenso de luz se aproximou célere dele,
e se transformou numa linda criança
angelical... A mesma criança que o estava ajudando,
e que ele tão bem a conhecia;
- Olá, como está? Que a luz e a paz do Mestre
Jesus estejam com você!
- Olá, meu anjo! Que assim seja! Eu estou bem.
Suportando com resignação a prova porque tenho que passar.
- Eu sei. E está suportando bem. Não se
preocupe. Eu vou está sempre por perto. Depois dessa
prova você vai estar mais leve, mais saudável,
mais depurado para alçar voos espirituais mais altos...
- O corpo físico que o abriga e que está lá
embaixo dormindo, vai estar mais forte, não só pelo
alimento material que recebeu, mas também por
revigorantes energias fluídicas que o seu perispírito
também recebe agora, e vai continuar recebendo,
porque você merece, porque a sua alma já está
menos impura, por isso sofre menos, por isso
vai superar a prova, quase que sem dor física e psíquica...
Até breve, irmão... Fica com Deus, sempre!
Estaremos todo tempo nos reencontrando. Lá embaixo e aqui em cima, nesse
sublime plano astral... Vou ali prestar um socorro a uma alma também
necessitada...
No outro dia, o mendigo acordou mais disposto,
com um aspecto físico melhorado.
Tomou café e agradeceu a mãe da criança pela
ótima acolhida.
Disse-lhe que tinha tido um sonho lindo com a
filha dela. E que a filha dela é um anjo.
Um anjo que está aqui e no céu; no céu e aqui;
em missão especial de auxílio fraterno
aos que precisam evoluir com pureza de
espírito...
E a mãe, com lágrimas nos olhos, abraçou aquele
homem que passava pela prova
da mendicância, mas que é uma alma boa, tanto quanto
a alma angelical de sua filha,
que ainda dormia, serena e feliz, em sua cama
macia, no aconchego pueril do seu quarto...
E o mendigo se despediu da mãe, ainda chorando
de tanta emoção, dando-lhe um forte abraço...
Escritor
Adilson Fontoura
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