Zefinha morava numa casa simples nos arredores
da cidade. Não quisera continuar os estudos. Cursara até o ensino fundamental.
Desfrutava da plenitude natural de sua adolescência, mas dentro dos limites
socioeconômicos que a sua humilde família podia lhe oferecer. O seu pai
trabalhava como ajudante braçal numa firma de compra e venda de cacau. E a sua
mãe era apenas dona de casa. Dois garotos pré-adolescentes completavam a
família. Na época dos seus quinze anos, a mãe fizera um bolo, que, junto com
alguns refrigerantes, pôde viabilizar a modesta situação, pedindo a filha
debutante que convidasse os amigos e amigas mais próximos, para cantarem os
parabéns. O pai, também não deixou de contribuir, presenteando-lhe com um lindo
vestido, para ser usado na ocasião tão especial.
Passados dois anos, Zefinha, agora com
dezessete anos, continuava na mesma rotina, somente ajudando a mãe nos afazeres
domésticos. Apesar de ter desistido dos estudos, saía muito pouco. Não era moça
afoita às badalações próprias de sua idade. Porém, eventualmente, aceitava o
convite das amigas mais próximas, indo com elas à pracinha, não mais além, do
bairro periférico onde moravam, reunindo-se com outros amigos num papo alegre,
animado, quando então, podia rolar alguma paquera; mas Zefinha, quase sempre
retraída, falava muito pouco; limitando-se a ouvir e observar o jeito
extrovertido das amigas, contando as peripécias libidinosas que haviam feito
com os rapazes que já conheciam, e até com outros desconhecidos, quando se
reuniam em eventos sociais, e depois se excediam em divertidas orgias, rolando
bebida alcoólica, droga, sexo;... Zefinha, contudo, era diferente; não gostava
de participar dessas libertinagens; algumas amigas a chamavam de “mauricinha pobrinha”,
ironizando o fato dela ser pobre mas se comportar como rica; agindo como se
pertencesse à minoria social privilegiada em abastanças econômicas; mas ela não
se importava com as pilhérias maldosas das amigas, atendo-se a lhes dizer com
delicadeza e um suave sorriso, que aquele era o jeito dela se portar e não
tencionava mudar só para satisfaze-las; sentindo-se humilde, gostava mesmo era
de vivenciar as coisas simples da vida, mas que não depreciasse o seu caráter.
Sentada num dos sofás da sala de sua casa,
após o almoço, Zefinha folheava a Bíblia que ganhara de presente de uma de suas
amigas preferidas que era evangélica. Observando a filha, a mãe sentou-se ao
seu lado, dizendo-lhe:
- Zefinha, minha filha, eu e o seu pai
gostamos muito de sua conduta. Você é uma moça ajuizada. Quase não sai. Vai só
até a pracinha e depois volta para casa. Não se deixou influenciar por algumas
amigas suas que já estão perdidas nos vícios do mundo. Agradecemos a Deus,
filha, por você conservar-se íntegra. A nossa família é pobre. Os nossos
recursos são bem modestos. Mas o seu pai não deixa faltar o pão de cada dia.
Temos criado você e os seus dois irmãos com muito amor, porque só queremos o
bem-estar de vocês. Mesmo pobres, mas temos a nossa dignidade. Somos pobres,
mas honestos. Queríamos muito que você continuasse os estudos, já que é assim
tão prendada, levando uma vida pacata. Você já está quase no final de sua
adolescência, e não a aproveitou para estudar; pelo que sabemos, não tem
namorado; se estivesse namorando, já o teria trazido para que a família o
conhecesse; embora esteja seguindo o caminho do bem, graças a Deus. Porém,
ainda está nova. Pensamos que você, completando os estudos, poderia planejar
melhor o seu futuro. Teria uma profissão. Faria um concurso público. Garantiria
um emprego. E quando pensasse em casar, poderia levar uma vida em família mais
confortável. O que você acha, filha, acerca do que acabo de lhe falar?
- Acho que a senhora tem razão, minha mãe; eu
pensava que não tinha inclinação para os estudos; hoje penso que não estudava
só por preguiça; quase sempre não me sentia disposta para ler e escrever; mas
sei que o estudo é uma necessidade vital à nossa vida; sem o estudo não nos
instruímos, não adquirimos conhecimentos diversos, não aprimoramos o nosso
saber; não nos profissionalizamos; não sou uma pessoa ambiciosa, gosto da vida
simples que levo; ainda não namorei porque não tive vontade; quando isso ocorrer,
claro que a família saberá; entretanto, minha mãe, aqui sentada folheando essa
Bíblia, sinto que preciso direcionar a minha vida de uma forma mais objetiva;
assim, tomei duas decisões: a primeira é que vou voltar a estudar; e a segunda
é que vou me tornar evangélica; assim que completar dezoito anos, providencio a
minha carteira profissional e arrumo um emprego; vou trabalhar de dia e estudar
de noite; passando a frequentar a igreja evangélica do bairro mais próximo ao
nosso, participando dos cultos no final de semana; daqui pra frente, essa será
a minha rotina de vida.
Olhando a filha com tamanha surpresa, dona
Célia concordou com a sua sensata decisão:
- Fiquei muito feliz agora, minha filha, por
você ter tomado essa decisão. Os seus dois irmãos estão estudando e não pensam
em desistir. O seu pai e eu estávamos preocupados com você. Não sabíamos o que
realmente queria para a sua vida. Cremos que lhes damos uma boa educação
doméstica, que deverá complementar-se com uma razoável educação escolar. Se não
temos maiores recursos econômicos, no entanto, temos a maior riqueza que uma
família pode humildemente usufruir: a riqueza moral! Quanto a sua opção
religiosa, não nos opomos; apesar de sermos católicos, mas você é livre para
optar pela religião que melhor lhe convém. Só desejamos que você seja feliz,
minha filha, em sua abençoada caminhada existencial.
O frescor primaveril da tarde trazia um aroma
agradável de flores silvestres, adentrando suave no recinto doméstico,
envolvendo mãe e filha com os fluidos benevolentes de profunda afeição
familiar. Por alguns instantes ficaram ali abraçadas, compartilhando da mesma
emoção, no sossego da simplicidade do lar. De súbito, o silêncio fora quebrado
com o canto mavioso do sabiá. Como que despertando de um agradável transe
afetivo, desfizeram o abraço com delicadeza, para em seguida relaxarem numa
aguda gargalhada, cujo som misturou-se com o canto melodioso do sabiá,
ecoando-se por todo o interior da casa.
Três anos se passaram. Zefinha cumprira
fielmente a decisão que tomara. Concluíra o ensino médio. Trabalhava como
recepcionista num escritório de advocacia. Já pensava, inclusive, em fazer vestibular
para Direito, uma profissão que muito admirava. Como já se acostumara a estudar
de noite, faria um bom curso preparatório durante um ano, para poder enfrentar
o vestibular, com boas chances de ser aprovada. Desde que começara a frequentar
a igreja evangélica, se afastara das amigas que gostavam de curtir a vida
mundana. Jamais tivera tendência para vivenciar a vida libertina, os prazeres
viciosos que rebaixavam a moral das pessoas. Por isso que decidira em ser
evangélica, uma religião que se adequava mais ao seu jeito comedido de conduta.
Uma ou outra amiga mais insistente tentava
desviá-la do bom caminho, convidando-a para ir a eventos sociais inadequados ao
seu ilibado comportamento. Mas ela gentilmente recusava os convites, dizendo
que não tinha inclinação aos vícios mundanos. Morena cor-de-jambo, olhos cor de
mel, cabelos castanhos lisos cacheados, descendo-lhe até o meio das costas, tão
esbelta, Zefinha era realmente um belo exemplar feminino. Quando passava pela
pracinha, sobretudo à noite, nos finais de semana, com destino ao bairro mais
próximo, para cumprir as suas obrigações evangélicas, todos a admiravam. Os
rapazes suspiravam fundo; algum, mais saliente dizia: “ ah, se eu tivesse a
oportunidade de namorar essa gata tão linda; seria o homem mais feliz do
mundo”; e as moças, morrendo de inveja de sua beleza física, lhes dizia chacota
do tipo: “já vai, hein, mauricinha pobrinha; mas não se preocupe, belezoca, que
a sua hora de descer do salto, chega, ah, se chega”... Zefinha, como sempre
muito educada, ouvia os galanteios ou as indiretas, porém mantinha a serenidade
emocional e o equilíbrio psíquico que lhe eram tão peculiares, atendo-se apenas
a cumprimentá-los e depois seguia em frente, para satisfazer a sua vontade
edificante de adoração ao Senhor.
Uma certa noite, ela voltava do cursinho.
Desceu do coletivo na pracinha já quase deserta. Ainda teria que andar mais um
pouco para chegar em sua casa. Ao vê-la, uma de suas amigas, que morava na mesma
rua, se aproximou:
- E aí, Zefinha, você anda mesmo sumida, hein?
- Não estou sumida, Aninha, apenas ocupo o meu
tempo com coisas úteis, que me edifiquem, que possam me trazer bem-estar moral.
A amiga olhou-a de soslaio, furiosa.
- Você está querendo me dizer que não tenho
nenhuma moral? Que levo uma vida promíscua, envolvida com os vícios mundanos?
- Eu não lhe disse isso. Só lhe respondi o que
me perguntou. Você me vê quase todos os dias. Moramos na mesma rua. Nos
conhecemos desde criança. Só que o tempo passa e a força das coisas vai
modificando as nossas vidas. Daí, cada uma toma o rumo que lhe convém.
- Nesse caso, pelo visto, o seu rumo tá melhor
que o meu... Você sempre teve esse jeito recatado, esse nariz empinado, esse ar
de riquinha...
- Não se trata disso, Aninha! Tenho essa
natureza e não vejo mal algum em ser assim. Ocorre que, não gosto de agredir,
nem o meu corpo físico nem o meu espírito com práticas imorais. Levo uma vida
simples, trabalhando, estudando, cuidando da parte espiritual, enfim, buscando
os meus objetivos de vida.
- Se você se sente assim, tão diferente de
nós, a ponto de não mais querer se reunir conosco na pracinha como antes;
afastando-se como se fossemos fazer algum mal a você; acho que, o melhor que
tem a fazer é se mudar daqui do bairro; ir morar num meio social mais adequado ao
seu ar de superioridade...
As duas amigas iam andando na rua deserta.
Zefinha se mantinha calma, a despeito de não lhe agradar o modo irônico como
Aninha conduzia a conversa. Parecia mesmo que a atitude da amiga era de
provocá-la; fazê-la perder o equilíbrio; tirá-la do sério.
- Não tenciono sair daqui por enquanto,
Aninha. Nasci aqui e gosto de morar aqui. A minha família é pobre. Se moramos
na periferia é porque não temos condições de morar num bairro melhor. Como você
sabe, o meu pai é ajudante numa firma de compra e venda de cacau. E a minha mãe
é apenas uma dona de casa. Graças a Deus moramos numa casa própria. O pouco que
o meu pai ganha, dá pra ir sustentando a família modestamente. Agora que estou
trabalhando, também posso contribuir com a despesa para manter a família, já
que sou adulta, e os meus dois irmãos ainda estão adolescentes, só estudam. Assim,
família, trabalho, estudo e as minhas obrigações religiosas são as minhas
preocupações diárias. Mais pra frente, quando me formar, com a permissão de
Deus e dos meus esforços, pretendo conhecer alguém, um companheiro, cujas
afinidades recíprocas, possam nos direcionar a um matrimônio. Quando isso
ocorrer, claro que poderei morar num bairro socialmente melhor estruturado. Mas
não mudarei o meu jeito de ser. Continuarei a ser uma pessoa simples, que gosta
de viver a vida de uma forma simples. O fato de projetar para mim, uma vida
economicamente melhor, não mudará a minha personalidade. Gosto muito do
ambiente familiar, da vida social em família amorosa e pacífica. Aqui no
bairro, todos nos conhecem e gostam de nossa família. Enfim, quando tiver que
morar em outro bairro, não deixarei de vir aqui. A família e os amigos são um
bem precioso para mim.
Zefinha já estava quase chegando em sua casa,
quando Aninha diminuíra os passos, forçando a amiga a fazer o mesmo; olhando-a
com olhar raivoso, revelando inveja contida, disse-lhe, num tom irônico:
- Quer dizer que você só namora tencionando
casar. Não é do tipo que curte namorico. Parece ser a donzela mais cobiçada do
bairro e adjacências. Está guardando a virgindade para o príncipe encantado.
Uma raridade de mulher nos tempos atuais...
- Tenho a minha natureza recatada e não vejo
mal algum em ser assim. Num mundo tão leviano, tão promíscuo, tão afeito aos
vícios mundanos, manter o corpo e o espírito isentos dos males que prejudicam o
bem-estar físico e espiritual, é um dever de cada um de nós; pois aqui estamos
para aprendermos a exercitar a elevação moral de nossa consciência, segundo os
ensinamentos do Senhor Jesus.
Aninha olhou-a com desdém, mas tentou ser um
tanto compreensiva; em seguida insinuou algo para ver se Zefinha caía numa
possível cilada:
- Talvez você esteja certa em seus conceitos
cristãos; mas gostaria de dizer-lhe que tenho um amigo que gostaria muito de
conhecê-la; chama-se Orlando, ou Landinho, como ele gosta de ser chamado pelos
amigos...
- Se for uma pessoa do bem, não vejo nenhum
problema em tê-lo como amigo. Apesar de ser evangélica, não restrinjo as minhas
amizades ao meio evangélico. Só que, para que tenha uma amizade mais íntima com
alguém, tem que ter uma conduta parecida com a minha. Do contrário, será só um
conhecido, desses que você passa e cumprimenta como manda a boa educação.
- Entendo o seu ponto de vista. É bem o seu
jeito de ser. Mas o meu amigo é uma pessoa do bem, apesar de não ser
evangélico. Aparece por aqui de vez em quando. Ao vê você passar, se entusiasma,
pergunta quem é você, onde mora, o que faz... Vem sempre de carro e me disse
que o seu pai é um industrial. Apesar de ser rico, gosta de pessoas simples,
humildes; portanto, ele é do jeito que você tanto aprecia...
- Quem sabe, qualquer dia desses, quando ele
estiver por aqui e eu for passando, você poderá apresentá-lo a mim; mas saiba
que não tenciono namorar antes de fazer o meu curso de Direito; quanto a ele
ser rico, para mim não faz diferença; o que valorizo no ser humano é a sua boa
índole.
Sorrindo ironicamente, Aninha contemporizou:
- Não se preocupe quanto a isto, Zefinha, pois
Landinho é do bem. É um rapaz educado, atraente, de bons princípios morais, e
jamais irá ofendê-la. Quer apenas conhecê-la porque gostou muito de você, não
só por sua beleza física, mas pelo seu jeito resguardado, prendado; ele não a
vê em nosso meio, por isso, acha que você é uma mulher adequada às suas
pretensões de um futuro casamento; claro que, no início, vocês serão bons
amigos; depois, conforme as afinidades mútuas poderão namorar, e ele,
certamente, será paciente e compreensivo, esperando-a até que se forme.
Ao ouvir aquelas palavras da amiga, que lhe
pareciam tão sinceras acerca do futuro amigo, Zefinha finalizou o papo, lhe
dizendo:
- Bem, já estou chegando em casa, Aninha; você
ainda vai andar só mais um pouquinho; quanto ao Landinho, pela sua descrição,
me parece ser uma boa pessoa; fale pra ele que terei sim, uma grande satisfação
em conhecê-lo. Tenha você, uma boa noite, amiga!
- Boa noite, amiga!
Ao despedir-se de Zefinhha, Aninha seguiu em
frente rumo à sua casa que ficava quase no final da rua; tão sorridente,
pensou: “ Pronto! Parece que ela acreditou mesmo no que lhe disse sobre
Landinho; ela mordeu a isca direitinho; não sabe o que a espera; amanhã de
manhã ligo pra ele contando que o plano começou a dar certo; depois do primeiro
encontro será mais fácil fazer o que ele pretende; já não vejo a hora dele
acabar de vez com a postura moralista dessa mauricinha pobrinha “. Fora com
esses pensamentos ordinários, acerca do plano preliminar para desmoralizar a
amiga, que Aninha chegara em sua casa, abrira a porta e entrara, fechando-a em
seguida, causando um pouco de barulho, sem se importar com o adiantado das
horas noturnas.
Casa, trabalho, cursinho, igreja; essa era a
rotina invariável de Zefinha, que, longe de estressar-se, a cumpria com
disciplina e convicção dos seus objetivos de vida. Já no coletivo, a caminho do
trabalho, tão abstraída, ela pensava na conversa que tivera com a amiga na
noite anterior. Estava em dúvida, se devia confiar ou não, nela. Gostava dela,
mesmo sabendo que havia enveredado pelos caminhos tortuosos dos vícios
mundanos. Amigas de infância, cresceram juntas e unidas na mesma rua, no
deleite de variadas brincadeiras tão próprias da idade pueril. Porém, à medida
que foram crescendo, aos poucos o afastamento de ambas fora inevitável, devido
aos seus modos indecentes, optando em cultivar amizades com moças e rapazes de
vida promíscua e viciosa. Ao contrário dela, que, mais reservada, preferia
cultivar poucas, mas virtuosas amizades. Por tudo isso, receava se dizia a
verdade quanto à decência do tal amigo, que, a qualquer momento, poderia
ser-lhe apresentado.
Três meses se passaram, sem que Aninha sequer,
lhe desse notícia de Landinho. Para Zefinha, essa atitude da amiga lhe era um
tanto estranha, já que se mostrara bem interessada para que ele a conhecesse.
Será que tudo aquilo que ela falara a respeito dele era papo furado, só pra
elevar o seu ego de moça casta, à espera do príncipe encantado? Ou será que
ocorrera algo de grave com Landinho, que ela, por algum motivo, não queria lhe
dizer? Pelo sim, pelo não, não se arriscaria a lhe indagar sobre o assunto,
para não demonstrar interesse; afinal, ela realmente não estava interessada
nele, pelo menos, do ponto de vista de um possível namoro; todavia, sentia
alguma curiosidade em conhecer Landinho; apenas para se certificar se ele
deveras tinha as boas qualidades morais descritas pela amiga; desse modo,
poderia acrescer ao seu restrito círculo de amizade mais chegada, quem sabe,
mais um amigo em quem pudesse confiar para trocar ideias sensatas e
edificantes. Mas, em seu íntimo, tinha dúvida quanto a essa possibilidade. A
despeito de levar uma vida condicionada aos valores morais cristãos,
fechando-se diariamente em luz com preces diárias, pedindo, louvando e
agradecendo a Deus por tudo de bom e construtivo que o Criador tem-lhe
proporcionado, entretanto, sentia-se um tanto angustiada, sem saber o motivo
daquela aflição estranha ao seu jeito habitual de ser. Uma pergunta, que ainda
não sabia a resposta, atordoava o seu espírito: que tipo de amizade Landinho
tinha com Aninha e o seu grupo de amigos ociosos? Algo a fazia pensar que boa
coisa não era; algo em comum os unia, só não sabia o quê.
Num domingo à noite, Aninha estava sentada num
dos bancos da praça ajardinada do bairro. Com o semblante sério e ríspido, não
tirava os olhos do celular, como se estivesse aguardando uma ligação
importante. De súbito, o seu toque estridente assustou-a; num ímpeto,
levantou-se bruscamente:
- Alô! É você, Landinho?
- Sim, Aninha, sou eu!
- Você sumiu, cara, o que houve?
- Não posso ir aí, por enquanto. A polícia está
me procurando. Estão dando batida em algumas bocas de fumo. Alguém do bairro me
viu aí, não sei quem, e me denunciou à polícia. Pode ser também alguma
estratégia do bando rival. Parece que estão querendo tomar a boca daí. Só posso
aparecer quando as coisas estiverem sob o meu controle de novo. Quanto ao que
combinamos, mudei de ideia, vou fazer diferente.
- Como assim?
- Ela é diferente, Aninha, das outras que já
consegui. É evangélica. Não aceitará sair comigo no primeiro papo. Terei que
ter muita lábia e paciência pra convencê-la. Mesmo tendo que ficar por algum
tempo ausente, não quero desistir dela. O seu jeitinho recatado de donzela me
excita. Você sabe como eu sou, né, quando boto o olho numa gata, enquanto não a
consigo, não sossego. Lembra quando te conheci, Aninha, só que com você foi
mais fácil... Na época, você se sentiu atraída pela vida mundana, pelo prazer
libertino, pela curiosidade em drogar-se... Lembro-me que depois você me
apresentou mais duas amigas suas, cuja facilidade em tê-las foi a mesma. Agora,
com a possibilidade de ser o primeiro da evangélica prendada, mesmo que seja de
um modo tão brutal, é algo novo e excitante pra mim, não posso perder essa rara
oportunidade.
Aninha ouvia muito atenta, o papo de Landinho,
em sonoras gargalhadas, tão curiosa em saber o novo plano a ser executado pelo
degenerado traficante. Fosse o que fosse, só não queria que a matasse; mas que
a deixasse bem debilitada, bem estragada, bem molestada; seria a sua forma de
vingar-se de alguém que a desprezava, que a esnobava, que não a tinha mais como
sua amiga, só porque seguia pelo caminho da decência moral; assim, sofrendo
tamanha decepção, marcaria pra sempre a vida dela, pois sentiria no corpo e na
alma, o peso dos males destrutivos do mundo.
- Pode contar comigo, Landinho! Você sabe, né,
que a vontade que tenho é de vingar-me dela; por isso aceitei colaborar para
que você a tenha de qualquer jeito; vai, diz aí o que pretende fazer?
- Daqui a pouco, um dos meus homens de
confiança vai te procurar aí na praça; não saia daí antes dele chegar; o plano
é o seguinte: assim que ela passar, você deverá mostrá-la pra ele; isso será o
suficiente pra ele gravar a sua fisionomia, o seu aspecto físico; no próximo
domingo, esse mesmo homem, junto com outro, ficarão de plantão nas imediações
da igreja que ela frequenta; assim que terminar o culto, ela fará o trajeto de
retorno pra casa; antes de chegar à praça, passará por uma rua deserta e meio
às escuras; os dois homens, encapuzados, já estarão seguindo-a de carro; é
então que, no momento oportuno, pararão o carro bruscamente ao seu lado,
executando o sequestro. Será dessa forma que a terei, Aninha. Não posso me
arriscar a ir aí. Seria presa fácil, tanto pra polícia, quanto pro bando rival.
Ficarei por algum tempo escondido num sítio que tenho na zona rural, a dez
quilômetros da cidade. É pra lá que os homens deverão levá-la. E será lá, que o
serviço completo será feito. Ela não me conhece. Nem vai saber que foi Landinho
quem ideou todo o plano diabólico de sequestro, sevícia e estupro. Farei o
serviço várias vezes sem mostrar o meu rosto. E você, Aninha, ficará isenta de
qualquer suspeita como cúmplice do que foi, por nós planejado. Aí no bairro e
adjacências, você já distribui a droga pra mim. Portanto, é uma pessoa de minha
inteira confiança. Caso a polícia faça o cerco, se proteja de algum modo e ligue
imediatamente pra mim, que, em pouco tempo, os meus homens a tirarão daí, e a
trarão aqui pro sítio.
Fora com muita satisfação, transbordando
contentamento, que Aninha finalizara o papo com Landinho, que, do outro lado da
linha, lhe perguntara:
- E então, minha querida Aninha, está
satisfeita, gostou do novo plano?
- Um plano admirável, meu adorado Landinho! Fique
a vontade pra executá-lo! Só não quero que a mate!
- Não, minha parceira fiel. Não farei isso.
Lembre-se que, combinamos o seguinte: de minha parte, vou me satisfazer com o
meu instinto sádico; de sua parte, terá a sua vingança concretizada.
O plano dera certo. Zefinha fora sequestrada,
estuprada e seviciada. Numa quarta-feira, pela manhã, bem cedo, a polícia
rodoviária federal a encontrara à beira da rodovia. Estava despida. O corpo
ensanguentado e desfigurado. O policial tomara-lhe o pulso. Ainda estava viva.
Escritor Adilson Fontoura
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