O escritor argentino Jorge Luís Borges morreu
como um dos monstros sagrados da literatura universal. Deixou uma obra
incomparável em língua espanhola, sobretudo pela capacidade inventiva e pelo
poder de suas metáforas de transcendência filosófica. Nos seus últimos anos de
vida, viajou incansavelmente pelo mundo com a esposa, Maria Kodama, ex-aluna e
secretária particular. Passava no máximo dois ou três dias em cada lugar, não
dando muita importância nem para a cegueira nem para a velhice. Um tigre.
Mas
houve um tempo de tamanha angústia em que ansiara pela morte, e com tal
sofreguidão que a certa altura afirmou que morrer para ele era a última
esperança. Estava convicto disso. Um dos poemas feitos em sua homenagem,
“Buenos Aires”, fala desse momento crucial: “...Debaixo da infelicidade a maior
esperança:/ morrer/ quando as luzes se apagam/ e sob as sombras da lua/ não há
quase nada”.
Intentava escrever prefácios para cem livros,
ainda assim – sempre que a ele se referiam como um dos últimos sábios sobre a
terra – dizia “Não, não tenho nenhuma sabedoria. Na verdade li muito pouco, e
escrevi alguns livros, somente”.
“Não criei personagens. Tudo o que escrevo é
autobiográfico. Porém, não expresso minhas emoções diretamente, mas por meio de
fábulas e símbolos. Nunca fiz confissões. Mas cada página que escrevi teve
origem em minha emoção”
Ainda chove quando termino de ler estes poemas de
Borges e um dos contos rígidos do viejo brujo. O que toca, o que encanta
de imediato, é a simplicidade do verso, a precisão das palavras inesperadas,
essa habilidade mágica de dizer as coisas simples e sabiamente. A frase exata
denuncia o esforço da comunicação desejada até a última gota, como
transparência e elucidação.
Há magníficos autores cujo entendimento só é
possível após um esforço massacrante, que asfixia o leitor, embora na sua forma
de poetar haja sublimação e arrebatamento, embora produzam textos de qualidade
inegáveis; outros há que conseguem aliar à competência estilística uma
capacidade de comunicação impressionante, que não se esgota, que se abre sempre
para significados precisos e ao mesmo tempo múltiplos.
Jorge Luís Borges é desses autores que conseguem
comunicar esplendidamente, que conseguem falar de maneira inequívoca às mentes
e aos sentimentos. Era iluminado e luminoso, embora cego.
O menino Borges decidiu a certa altura ser
escritor. Tomou da pena e do lápis e, aos oito anos de idade, escreveu seu
primeiro conto: La visera fatal.
Oitenta anos mais tarde, mesmo cego, velho, encurvado sob o peso da idade e sob
o signo da descrença, ainda prosseguia ditando palavras, Primeiro para a mãe,
Leonor; depois para a secretária particular, amiga e finalmente esposa, Maria
Kodama. Seguiu publicando livros que ditava por inteiro, cada vez mais belos.
Esperava o Nobel, que não chegou até a sua morte em 1986.
Traduziu aos nove anos O Príncipe Feliz, de Oscar Wilde, que foi publicado no jornal “El
País”, de Buenos Aires. Essa precocidade não deveria espantar: mesmo antes de
falar espanhol, sua avó paterna lhe havia ensinado a falar inglês. Tinha fascinação
pelo idioma ianque e, mais tarde, ao lado de Maria Kodama, principiou a estudar
o inglês antigo. Dizia ter lido pouco: Dickens, Tolstoi, Eça de Queiroz...;
dizia ter escrito alguns livros, somente; dizia que se tivesse nascido séculos
antes sequer seria lido; quem sabe, ignorado. Autores eram, para ele, Dante,
Shakespeare, Virgílio...
Depois de participar do movimento vanguardista
literário espanhol denominado de ultraísmo, Borges (ao retornar à Argentina)
filiou-se ao movimento modernista. Durante aproximadamente sete anos escreveu
uma série de ensaios, contos e poesias, mas só em 1928 a crítica rendeu-se ao
talento do tigre argentino. Sua obra refletia a erudição conquistada desde a
infância, sob a influência da mãe Leonor, da avó paterna e do pai advogado e
professor, Jorge Guillermo Borges.
“Não, não tenho nenhuma sabedoria”, corrigia o
Bruxo quando lhe comentavam ser último sábio sobre a Terra, arrematando: “Li e
reli quase sempre os mesmos livros”. Sabia do que falava, com ironia maleável
na voz pungente; era sábio sim.
Perdera a vista – como leitor – no ano de 1955, o
que o fazia lembrar uma frase de Steiner: Quando algo te acaba, precisas saber
como iniciar. E Borges dizia então ter voltado ao princípio, com os estudos do
inglês antigo e do islandês. Maria Kodama era de origem japonesa e, durante
certo tempo, Borges passou a aprender também japonês.
Muitas vezes afirmou que tinha convicção de que
seu destino era ser escritor, mas que não esperava ser conhecido: “No fundo,
queria ser um escritor obscuro, quase imperceptível”. A afirmação parece
paradoxal, levando-se em conta que Borges desejava o Nobel e a ele aspirou até
o último momento. Essa não parece ser a postura de um autor que buscava o
anonimato perfeito.
Afirmava
freqüentemente o seu ateísmo. Admirava o pai, também ateu, e revelava que a
felicidade mesmo só conseguia indiretamente, pelo trabalho. Solitário Borges.
Falava da solidão como de uma aliada às avessas de sua criação, espécie de
segunda companheira, sombra sempre em volta dos livros acumulados sobre a mesa,
empilhados nas estantes: “Passo boa parte do meu tempo só, conheço poucas
pessoas. Então fico planejando poemas, narrações, para ditá-los a Kodama no dia
seguinte ou à noite, ou a qualquer hora”.
A consagração de Borges só veio em 1935, depois
da publicação de seu primeiro livro de contos História Universal da Infância. O universo fantástico de suas
narrativas viria a ser inaugurado mais tarde, a partir do volume Ficções, alcançando o ápice em O Aleph. Para Borges, esses dois livros
eram sua bibliografia.
Com o passar dos anos, quando a cegueira se fez
completa, a mãe Leonor passou a tomar conta de escritor, lendo para ele e
escrevendo o que ditava. Em 1967, Borges casa-se com uma amiga de infância,
Elsa Milian, mas o casamento não dura muito.
Leonor morre em 1975. O escritor ainda consegue
publicar alguns livros, ajudado por amigos. Sentindo a ausência da mãe, revela
que, embora nunca tivesse pensado nisso, Leonor fora quem pacientemente, quieta
e efetivamente, promovera sua carreira literária. Kodama tornou-se sua
secretária particular em 1981. Casaram em 1986, no Paraguai, pouco antes do
escritor morrer de câncer no fígado.
Muitas vezes foi acusado de intelectual de
direita. Mas ligava pouco para isso. Se dizia anarquista, um homem que não
tinha nada a ver com a política. “Não conheço nenhum político, não sou filiado
a nenhum partido, sou teoricamente anarquista – o máximo de governo - mas isso
é quase impossível”, defendia.
Mesmo sob a mais completa cegueira, Borges em
muitos momentos foi profético, como quando comentou – durante o governo
Alfonsin – a prisão e julgamento dos militares torturadores argentinos,
responsáveis pelo desaparecimento de milhares de civis: “No que se crê é que vá
haver sentenças severas, e depois de algum tempo uma espécie de anistia para
esses homens. Então tudo não passará de uma farsa”.
Cinco meses antes da morte de Borges, Maria
Kodama concedeu entrevista à Gaceta del Libro, de Madri, falando das constantes
viagens que vinha fazendo com o escritor pelo mundo. Segundo ela, Borges
demonstrava estar melhor do que nunca, divertido, entusiasta, passando no
máximo dois ou três dias em cada lugar. Não imaginava que poderia passar seus
últimos anos pulando de um canto para outro, não dando importância nem à
cegueira, nem a velhice.
“Aqui sob os epitáfios e as cruzes não há quase
nada. Aqui não estarei eu. Estarão meu cabelo e minhas unhas, que não saberão
que o resto morreu, e seguirão crescendo e serão pó”
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